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Apesar de saborear essa hora, fazia
questão de ordem. Antes de atravessar uma rua movimentada, hesitava um pouco.
Gostava de caminhar num ritmo uniforme. A fim de não ter de se apressar, aguardava
o instante propício. Foi quando alguém perguntou em voz alta a outra pessoa:
“Pode me dizer onde fica a Mutstrasse?”. O interrogado não respondeu. Kien se
admirou. Parecia que em plena rua existiam, além dele mesmo, outros seres
taciturnos. Sem levantar o olhar, aguçava os ouvidos. Como reagiria o
interrogador em face dessa mudez? “Perdão, o senhor não poderia me dizer, por
gentileza, onde fica a Mutstrasse?” Apesar de ele intensificar a cortesia, não
teve mais sorte que antes. O outro não disse nada. “Acho que o senhor não me
ouviu. Rogo-lhe a fineza de me dar uma informação. Talvez tenha a bondade de me
explica onde posso encontrar a Mutstrasse.” Em Kien despertou a avidez de
saber. Por índole, não era curioso. Propunha-se, porém, a contemplar esse
indivíduo calado, no caso de ele persistir na mesma mudez. Sem dúvida, o homem
estava absorto em pensamentos e queria evitar qualquer interrupção. E ele não
disse nada, mais uma vez. Kien aplaudiu-o. Entre milhares de pessoas, um
caráter capaz de resistir às casualidades! “Então, é surdo?”, gritou o
primeiro. Agora o outro vai responder, pensou Kien, começando a perder o
interesse por seu favorito. Quem controla a língua, ao ser insultado? Virou-se
em direção à rua. Chegara o momento de atravessá-la. Mas hesitou, admirado com
o ininterrupto silêncio. O outro continuava a não dizer nada. O que se devia
esperar era uma explosão cada vez mais forte de ira. Kien previa uma briga. Se
o interrogado se comportasse vulgarmente, ele, Kien, teria razão em achar que
era a única pessoa de caráter nas redondezas. Ponderou se já podia olhar a cena
que decorria à sua direita. Eis que o primeiro esbravejou: “O senhor não tem
educação! Perguntei-lhe cortesmente uma coisa! Quem pensa que é? Seu
grosseirão! Será que é mudo? O outro permaneceu calado. “O senhor vai me pedir
desculpas! Pouco me importa onde fica a Mutstrasse! Qualquer um pode informar.
Mas o senhor vai me pedir desculpas! Ouviu?”. O outro não deu ouvidos, e isso
aumentou o respeito de Kien. “Vou entregá-lo à polícia! Sabe quem sou? Seu
esqueleto! E um homem desses pretende ter cultura! Onde arranjou essas roupas?
Num prego? É o que parece! E o que tem aí debaixo do braço? Vou lhe mostrar uma
coisa. Quem pensa que é?”
Nesse momento Kien recebeu um forte
empurrão. Alguém lhe agarrava a pasta, procurando arrancá-la. Com um puxão
muito superior as suas forças, Kien liberou os livros das garras alheias.
Energicamente voltou-se à direita. Seu olhar se destinava à pasta, mas também
se fixou num baixinho gorducho, que furiosamente ralhava com ele. “Seu
malcriado! Seu malcriado! Seu malcriado!” O outro, o taciturno, o caráter que
se sabia conter mesmo na cólera, era o próprio Kien.
. . .
Trecho do livro Auto de Fé de Elias
Canetti, Cozacnaifi
*
Ápice literário de Elias Canetti
(1905-1994), um dos principais escritores de língua alemã do século XX.
Centrada nos temas do isolamento, fanatismo, destruição e autodestruição, a
obra foi banida pelo nazismo e tratada por Thomas Mann como um livro à frente
de seu tempo. Peter Kien, o protagonista, é filólogo e sinólogo, grande
conhecedor das línguas antigas, embora incapaz de penetrar os problemas
contemporâneos. Ele é proprietário da mais importante livraria privada de toda
a sua grande cidade e leva consigo uma pequena porção dela aonde quer que vá.
Temendo contatos físico e social, Kien desposa, entretanto, sua velha
governanta, ignorante e mesquinha, que acaba por tirar-lhe tudo. A edição
inclui o ensaio “O primeiro livro”, em que Canetti fala sobre Auto de fé.
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