sábado, 13 de setembro de 2014

Id-ividual

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Apesar de saborear essa hora, fazia questão de ordem. Antes de atravessar uma rua movimentada, hesitava um pouco. Gostava de caminhar num ritmo uniforme. A fim de não ter de se apressar, aguardava o instante propício. Foi quando alguém perguntou em voz alta a outra pessoa: “Pode me dizer onde fica a Mutstrasse?”. O interrogado não respondeu. Kien se admirou. Parecia que em plena rua existiam, além dele mesmo, outros seres taciturnos. Sem levantar o olhar, aguçava os ouvidos. Como reagiria o interrogador em face dessa mudez? “Perdão, o senhor não poderia me dizer, por gentileza, onde fica a Mutstrasse?” Apesar de ele intensificar a cortesia, não teve mais sorte que antes. O outro não disse nada. “Acho que o senhor não me ouviu. Rogo-lhe a fineza de me dar uma informação. Talvez tenha a bondade de me explica onde posso encontrar a Mutstrasse.” Em Kien despertou a avidez de saber. Por índole, não era curioso. Propunha-se, porém, a contemplar esse indivíduo calado, no caso de ele persistir na mesma mudez. Sem dúvida, o homem estava absorto em pensamentos e queria evitar qualquer interrupção. E ele não disse nada, mais uma vez. Kien aplaudiu-o. Entre milhares de pessoas, um caráter capaz de resistir às casualidades! “Então, é surdo?”, gritou o primeiro. Agora o outro vai responder, pensou Kien, começando a perder o interesse por seu favorito. Quem controla a língua, ao ser insultado? Virou-se em direção à rua. Chegara o momento de atravessá-la. Mas hesitou, admirado com o ininterrupto silêncio. O outro continuava a não dizer nada. O que se devia esperar era uma explosão cada vez mais forte de ira. Kien previa uma briga. Se o interrogado se comportasse vulgarmente, ele, Kien, teria razão em achar que era a única pessoa de caráter nas redondezas. Ponderou se já podia olhar a cena que decorria à sua direita. Eis que o primeiro esbravejou: “O senhor não tem educação! Perguntei-lhe cortesmente uma coisa! Quem pensa que é? Seu grosseirão! Será que é mudo? O outro permaneceu calado. “O senhor vai me pedir desculpas! Pouco me importa onde fica a Mutstrasse! Qualquer um pode informar. Mas o senhor vai me pedir desculpas! Ouviu?”. O outro não deu ouvidos, e isso aumentou o respeito de Kien. “Vou entregá-lo à polícia! Sabe quem sou? Seu esqueleto! E um homem desses pretende ter cultura! Onde arranjou essas roupas? Num prego? É o que parece! E o que tem aí debaixo do braço? Vou lhe mostrar uma coisa. Quem pensa que é?”

Nesse momento Kien recebeu um forte empurrão. Alguém lhe agarrava a pasta, procurando arrancá-la. Com um puxão muito superior as suas forças, Kien liberou os livros das garras alheias. Energicamente voltou-se à direita. Seu olhar se destinava à pasta, mas também se fixou num baixinho gorducho, que furiosamente ralhava com ele. “Seu malcriado! Seu malcriado! Seu malcriado!” O outro, o taciturno, o caráter que se sabia conter mesmo na cólera, era o próprio Kien.

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Trecho do livro Auto de Fé de Elias Canetti, Cozacnaifi

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Ápice literário de Elias Canetti (1905-1994), um dos principais escritores de língua alemã do século XX. Centrada nos temas do isolamento, fanatismo, destruição e autodestruição, a obra foi banida pelo nazismo e tratada por Thomas Mann como um livro à frente de seu tempo. Peter Kien, o protagonista, é filólogo e sinólogo, grande conhecedor das línguas antigas, embora incapaz de penetrar os problemas contemporâneos. Ele é proprietário da mais importante livraria privada de toda a sua grande cidade e leva consigo uma pequena porção dela aonde quer que vá. Temendo contatos físico e social, Kien desposa, entretanto, sua velha governanta, ignorante e mesquinha, que acaba por tirar-lhe tudo. A edição inclui o ensaio “O primeiro livro”, em que Canetti fala sobre Auto de fé.


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