(...)
Mas
no decorrer de décadas e de séculos a teia de significados se desfia e uma nova
teia estende-se em seu lugar. Estudar história significa observar a tecedura e
o desfazimento dessa teia e dar-se conta de que o que parece ser, o que há de
mais importante na vida de alguém em determinado período torna-se para seus
descendentes algo totalmente desprovido de significado.
Em
1187 Saladino derrotou os cruzados na batalha de Hattin e conquistou Jerusalém.
Em resposta, o papa deu início à Terceira Cruzada com o propósito de recapturar
a cidade sagrada. Imagine um jovem nobre inglês chamado John, que deixou sua
casa para conter Saladino, John acreditava que suas ações tinham um significado
objetivo. Acreditava que, se morresse na cruzada, após a mote sua alma
ascenderia ao céu, onde iria usufruir da eterna felicidade celestial. Ele
ficaria horrorizado se viesse a saber que a alma e o céu eram apenas histórias
inventadas pelos humanos. John acreditava de todo coração que, se chegasse à
Terra Santa e algum combatente muçulmano com um grande bigode desferisse um
golpe de machado em sua cabeça, sentiria uma dor insuportável, um som agudo nas
orelhas, suas pernas ruindo, sua vista escurecendo – e no instante seguinte
veria uma luz brilhante à sua volta, ouviria vozes angelicais e harpas
melodiosas, e radiantes querubins alados lhe acenariam do outro lado de um
magnífico portão dourado.
John tinha uma fé muito forte
porque estava enredado numa teia de significado extremamente densa e poderosa.
Suas lembranças mais remotas eram as da espada enferrujada de seu avô Henry
pendurada no salão principal do castelo. Desde pequeno, John ouvia histórias
sobre Henry, que morrera na Segunda Cruzada e que está descansando com os anjos
no céu, protegendo John e sua família. Quando menestréis visitavam o castelo,
costumavam entoar canções sobre os bravos cruzados que tinham lutado na Terra
Santa. John ia à igreja, gostava de olhar os vitrais das janelas. Uma delas
mostrava Godofredo de Bulhão montado a cavalo e empalando em sua lança um
muçulmano de aparência maligna. Outra mostrava as almas dos pecadores ardendo
no inferno. John ouvia atentamente o sermão do sacerdote local, o homem mais
instruído que conhecia. Quase todo domingo o sacerdote explicava – com a ajuda
de parábolas bem trabalhadas e anedotas hilariantes – que não havia salvação
fora da Igreja Católica, que o papa em Roma era o santo padre e que seus
comandos deveriam ser sempre obedecidos. Se assassinarmos ou roubarmos, Deus
nos enviará ao inferno; mas, se matarmos muçulmanos infiéis, Deus nos dará as
boas-vindas no céu.
Um dia, quando John estava para
completar dezoito anos, um desgrenhado cavaleiro chegou ao portão do castelo e
com voz embargada deu a notícia: Saladino destruíra o exército cruzado em
Hattin! Jerusalém havia caído! O papa tinha declarado uma nova cruzada,
prometendo salvação eterna àqueles que nela morressem! Por toda parte as pessoas
pareciam estar chocadas e preocupadas, mas o rosto de John Iluminou-se com um
brilho sobrenatural, e ele proclamou: “Vou combater os infiéis e libertar a
Terra Santa!”. Todos fizeram silêncio por um instante, e depois sorrisos e
lágrimas surgiram no rosto de seus familiares. Sua mãe enxugou os olhos,
enlaçou-o em um grande abraço e lhe disse quanto estava orgulhosa dele. Seu pai
deu-lhe um poderoso tapa nas costas e disse: “Se eu ao menos tivesse a sua
idade, filho, juntar-me-ia a você. A honra de nossa família está em jogo –
tenho certeza de que você não nos desapontará!” Dois de seus amigos anunciaram
que iriam também. Mesmo o adversário jurado de John, o barão que vivia do outro
lado do rio, fez-lhe uma visita para lhe desejar boa sorte.
Quando John deixou o castelo,
aldeões saíram de suas choupanas para lhe dar adeus, e todas as garotas bonitas
olhavam emocionadas para o bravo cruzado que partia a fim de combater os
infiéis. Depois que zarpou da Inglaterra para percorrer seu caminho atravessando
terras estranhas e distantes – Normandia, Provença, Sicília -, a ele se
juntaram bandos de cavaleiros estrangeiros, todos com o mesmo destino e a mesma
fé. Quando o exército finalmente
desembarcou na Terra Santa e entrou em luta com as hostes de Saladino, John
ficou assombrado ao descobrir que até mesmo os malvados sarracenos
compartilhavam suas crenças. De fato, eles estavam um pouco confusos, pois
pensavam que os cristãos eram os infiéis e que os muçulmanos é que estavam
obedecendo às ordem de Deus. Mas também eles aceitavam o princípio básico de
que os que lutavam por Deus e por Jerusalém iriam diretamente para o céu quando
morressem.
Dessa maneira, fio por fio, a
civilização medieval estendeu sua teia de significados, apanhando John e seus contemporâneos
como se fossem moscas. Para o jovem, era inconcebível que todas essas histórias
fossem apenas invencionices. Talvez seus pais e tios estivessem errados. Mas
também os menestréis, e todos os seus amigos, e as garotas da aldeia, o ilustrado
sacerdote, o barão do outro lado do rio, o papa em Roma, os cavaleiros
provençais e sicilianos, e até os próprios muçulmanos – seria possível que
todos eles estivessem alucinando.
E passaram-se os anos. Enquanto
historiadores a observam, a teia de significados se desembaraça e outra se
estende em seu lugar. Os pais de John marrem, e depois deles todos os seus
irmãos e amigos, Em vez de menestréis cantando sobre as cruzadas, a moda em
voga é cantar sobre trágicos casos de amor. O castelo da família foi totalmente
destruído pelo fogo e, depois de reconstruído, não se vê nenhum traço da espada
do avô Henry. As janelas da igreja se despedaçaram durante uma tempestade de
inverno e o vidro que substitui o vitral não mais representa Godofredo de
Bulhão e os pecadores no inferno; em seu lugar, vê-se o grande triunfo do rei
da Inglaterra sobre o rei da França. O sacerdote local já não chama o papa de
“nosso santo padre” – agora ele é mencionado como “aquele demônio em Roma”. Na
universidade próxima, os estudiosos estudam os manuscritos dos gregos antigos,
dissecam cadáver e sussurram atrás de portas fechadas que talvez não exista
essa coisa de alma.
E os anos transcorrem sem
parar. Onde uma vez houve um castelo, existe hoje um centro comercial. No
cinema local está passando Monty Pyton em
busca do cálice sagrado pela enésima vez. Numa igreja vazia, um vigário
entediado fica satisfeito ao receber dois turistas japoneses. Ele dá uma longa
explicação sobre o vitral nas janelas, enquanto seus interlocutores sorriem
educadamente, assentindo sem entender nada. Na escadaria no lado de fora, um
bando de adolescentes brinca com seus iPhones. Estão assistindo a um remix recém-lançado
de “imagine, de John Lennon. “Imagine que
não existe céu”. Canta Lennon, “é fácil
tentar”. Um gari paquistanês está varrendo a calçada, enquanto um rádio nas
proximidades transmite as notícias: a carnificina na Síria continua, e a
reunião do conselho de Segurança terminou num impasse. Subitamente abre-se um buraco
no espaço, e um misterioso raio de luz ilumina o rosto de um dos adolescentes,
que anuncia: “Vou combater os infiéis e libertar a Terra Santa!”.
(...)
No Livro, Homo Deus, p152 – 155
Yuval
Noah Harari.
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