sábado, 6 de março de 2021

“Chance’s”; mitos e nós

 


Passava um pouco dos anos oitenta; logo que me mudei para Curitiba um dos primos de uma série deles com quem fui morar fez alguns comentários sobre o filme Muito Além do Jardim (1979), que somente ontem assistimos - minha esposa e eu. Quatro décadas depois de seu lançamento, observo a primeira lição: jamais reclame daquele seu amigo displicente se não assiste tudo o que lhe é indicado.

O filme é imperdível.


Em algumas passagens o próprio filme faz às vezes de “Chance”, o personagem de Peter Sellers; deixando as coisas no vácuo. Nós em tratando-se de espectadores viajandões estamos sempre a analisar o que a história, a narrativa pretende “realmente” que vejamos. As deixas. Quando na maioria das vezes não é nada do que argumentamos aos quatro ventos; embora este exercício faça parte e um motivo bastante cultuado ao insistirmos na apreciação da sétima arte.

Chance é um abobado que beira o mongoloide. E monossilábico; por alguma sorte mantém na maior parte do tempo a boca fechada - seu maior trunfo ainda que não entenda nada de nada do que está rolando - e pronto. Vivendo em um mundo paralelo sem imaginar o que realmente está acontecendo.



Totalmente alheio ao mundo comum após ficar por sei lá, mais de quatro décadas trancafiado em uma residência onde sua única ocupação era o jardim; o resto do seu tempo foi gasto assistindo televisão. As ações são magistralmente sincronizadas entre estes universos fazendo com que, até o final do filme, poucos percebam que há algo estranho com o personagem. O porquê dessa desdita infundada ninguém descobre. O “velho” que sabia, morre sem deixar pista alguma sobre o assunto e então entramos nós: os normais; os experts, aqueles que se especializaram em seus assuntos diários – diga-se de passagem; tudo.


Chance não existe para o mundo.

Não sabe ler ou escrever, não têm documentos, não tem família, e assim é enxotado de casa por uma dupla de advogados que se certifica, com meia dúzia de respostas distorcidas do jardineiro, de que não irá presta queixa por mais esta covardia invisível do sistema.




Durante um dia inteiro, por ruas de uma Washington que mais parece um gueto; não come, não bebe e é intimidado por pivetes consumidores de drogas que lhe apontam uma faca ameaçando enfiar-lhe no traseiro. Ao final do dia é ligeiramente prensado entre dois carros onde o diretor se vale de um daqueles momentos que parece o universo caprichosamente resolve intervir. O automóvel que evidentemente o atinge pertence a um magnata cuja esposa solícita presente e também presa em um mundo exageradamente diferente, se comove com o senhor empático e bem vestido. Assim é levado para a mansão estupenda; já no dia seguinte é apresentado ao presidente dos Estados Unidos cujo discurso ao povo americano - após o encontro onde teve uma conversa amistosa promovida pelo magnata -, é atribuído aChaunsey Gardner”, o nome que a mulher do magnata concluíra ser a graça do acidentado deduzida de suas balbúcias durante o trajeto.





Fazendo de conta que “Chance” é o próprio filme – e não deixa de ser – e eu mais um dos abobados que dou atenção e me disponho a analisar o que não compreendo, ou melhor, não sei da missa um terço. Posso colocar aqui as mais estapafúrdias interpretações do que assistimos ou compreendemos ser: “recados” do autor da obra ou do diretor no filme.






Preciso observar que tendo mais ao grupo de entusiastas da Sétima Arte e é deste posto que afirmo ter ficado evidente na versão do filme – não li a obra original - o estado de necessidade de as pessoas se aproximarem de indivíduos que pensam como elas, mesmo que isto não pactue de uma verdade uma vez que o ouvinte ouça, concorde e demonstre certo afeto ao seu interlocutor ansioso ou ainda pior: sem amor próprio. Em poucas palavras, a obra do diretor Hal Ashby aponta que: em se sendo empático endossamos suficientemente nossas pretensões para galgar todos os passos para um mínimo de representatividade na vida das pessoas.


Evidente também a falta de princípios voluntários; da falta de segurança dos personagens que demonstram sua constante necessidade de aprovação, mesmo que essa coadune com o silêncio como resposta, somada a face – abobada estática que denota ponderada intelecção reflexiva - que não demonstre crítica ou reprovação.



Ao final, enquanto seis camaradas conduzem o caixão para um significativo mausoléu em forma de pirâmide com um olho encravado na parte superior, o pequeno séquito, durante algumas dezenas de passos; discutem como irão se arranjar para mante suas tetas após as próximas eleições. Lucubrações - uma pequena síntese assinalando a futilidade a qual pode facilmente descambar a sobrevivência humana. A bagaçada se estende em meio ao translado de um defunto já sem poder algum quando um deles aventa o nome do sujeito até então invisível...




Ao pararem em frente à tumba; dá-se uma última fala: “nossa esperança é Chauncey Gardner”.



Voltando à terra; quatro décadas depois, não é difícil imaginar que o autor do romance “O videota” Jerzy Kosinski se trata de um autor observador cuja obra distinta se assemelha a George Orwell facilmente classificados entre aqueles que previam que o comportamento humano há tempos vem fabricando seus “Chances” contemporâneos.

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