“Então é isto que vocês chamam de vida; eu não gostaria disso nem para a minha morte”. Em uma era muito distante à Rilke, em meio aos esforços dos últimos suspiros, ela se deixa conduzir pelas águas translúcidas e inconspurcadamente límpidas co-partícipe de sua fortuna desde sempre, e imaginamos que, ao cometer o derradeiro ato ela expressa a síntese de sua sorte infeliz, que entendia ser também o resumo da sua existência como princesa.
A mais serena
de todas as pessoas com quem conviveu foi levada ao ato mais estarrecedor,
originado na loucura e desatino que torna insuportável a vida descompensada a
nossa volta.
Ophelia,
instruída e atenta ao mundo além dos muros do palácio não encontra uma única
alma capaz de preencher as lacunas que mais aumentavam suas dúvidas quanto mais
ouvia o pretextar inócuos dos conselheiros do rei.
Não havia
sentido real em nenhuma atitude da corte. Conquistas que levavam a mais
insegurança.
Quando
pequeno, o povoado precisava ser protegido por cavalheiros ordenados e que em
nome do rei não raro esfolavam, roubavam filhos e mulheres onde algumas poucas
lhes eram devolvidas ou escapavam, porém, todas, em estado deplorável. Uma vez
grande, havia toda uma ocupação para não perder espaço ou se desguarnecer e ser
atacado por tribos e reinos, insegurança que atingia inclusive estados aliados.
De resto tudo
era um enfado se caso não fosse um pecador que vive a fornicar a vida alheia
somado aos acontecimentos que tanto homologavam quanto mais originavam uma
serie de novas prevaricações.
Por sua vez, seus
sentimentos, mesmo que pouco pensasse a respeito, a lacuna do seu coração de
alteza estava ainda mais distante de ser preenchida que suas dúvidas palacianas,
monásticas e feudais. Havia um séquito que cortejava sua beleza, porém não
faziam par a sua sabedoria. Outros, mais próximos ao pai, a viam com interesse
político, a buscavam para uma egoísta aproximação ao rei, no entanto não
demoravam a se revelar, porém seu reduto como princesa era ínfimo e sua maior
angústia residia no terror que a paralisava ao imaginar que o rei a usasse como
moeda de troca; destino de todas as princesas que conheceu e de boa parte delas
que povoavam as histórias na corte e em escassos livros sobre o tema, que
devorava com a avidez de iguarias. “Não há nada aqui que supere meu interesse
por bons livros”.
Contrária a
todos na corte, nutria grande apreço ao circular próximo à criadagem. “Únicos
espaços onde a realidade é mais pura” considerando as dezenas de alas, algumas
realmente inabitáveis – mesmo por sua vontade - no palácio”.
Apesar de a
sabedoria entre os criados estar limitada aos afazeres de cada um, ao serem
costuradas as percepções como um todo, uma colcha de retalhos de saber se
estendia cobrindo todos eles, dos afazeres domésticos corriqueiros às tramas
políticas, perfídias e ardis digno dos mais instruídos palacianos e Ophelia era
a única que sabia esse segredo e o guardava para si. Ninguém realmente se
interessaria e, compartilhá-lo, não apenas não seria entendido por ninguém
outro, como poderia colocar em risco alguns de seus amigos. “Meu pai reinaria
muito melhor se os escutasse.”
Então chegou
momento tão temido da paralisia estarrecedora. Sua mãe que nunca a procurava
nos seus aposentos e jamais a acordara, agora o fez despertando-a mais cedo do
que de costume. Uma senhora que, não fosse a pompa de rainha, transpareceria
somente sofrimento e frustração que eram camuflados entre as futilidades
diárias de uma mulher sem brio; com poderes sobre todas as outras que conhecia,
porém, que constantemente era lembrada e castigada a carregar o estigma por ser
a culpada direta de não ter gerado um herdeiro ao rei.
“A alegria da
mãe entristeceu ainda mais o choque da notificação”. Uma mãe ausente que
abençoava todas as decisões do marido e que da parte dela, o casamento da única
filha era a oportunidade de revelar toda a pompa do reino aos reinos
subjugados; o casamento em si, dada a euforia dos acontecimentos não seria
levado em consideração até que algo maior contra a filha - caso fosse reclamado
- já muito após as núpcias, o que sempre se revelou “alarde de filha mimada”
afinal, aqui, as mulheres são apenas valorizadas se cumprem o único papel a que
prestam ou tem sentido aos seus senhores, como já dito: moedas de troca.
O príncipe,
mais um beberrão do Norte, causou-lhe asco à primeira vista independentemente
do que ouvira falar dele entre as arrumadeiras, ou então cozinha, estábulos e
jardins. Sabia que, devido sua posição, era pressionada a se prestar aos papeis
obrigatórios e mentiroso do festim e toda a artificialidade da aliança que em
nada lhe convinha, e, ao menos aos olhos de todos, forjou como jamais tivera
feito, o papel de noiva exemplar. Poupada devido aos afazeres do enlace e a
distância entre o reino de seu consorte - que paliativamente lhe servia como um
alívio ao jamais ter contato com o brutamontes até o que entendia como o
iniciar de sua mais completa agonia.
Agora, entregue
a volatilidade da alma, flutuava sobre as copas das árvores, suas eternas e
melhores ouvintes, únicas dignas de seu amor. De onde via seu corpo cuidadosamente
enfeitado sendo mansamente levado; unidos na pureza jamais encontrada entre os
seus.
Dedicado à
Cora Coralina