Um argumento infantil não pode ser
redarguido, deixamo-lo, por se entender a inutilidade de fazê-lo.
Não há limites à criação, e ainda
que uma razoabilidade seja necessária, é muito provável que ela jamais seja
entendida na sua extensão.
A busca deve se concentrar em
atingir esse voo além das nuvens que provocam o ruído; compreende ser isto
próprio delas? O atritar da matéria... têm elas a ciência limitada a sua
natureza de fazer chover. Cabe ao que sabe... calar.
Pensei esse texto após ler a carta
de Salman Rushdie,
transcrita abaixo,
por ocasião da abertura do
Parlamento
Internacional de Escritores.
*
O texto abaixo
é de autoria de Salman Rushdie que integra o livro “A força da palavra” de
Betty Milan.
O autor de “Os
versos satânicos” redige à época, uma Declaração de Independência, a carta de
princípios do Parlamento:
Esse, criado
depois da condenação de Rushdie, que passou a viver na clandestinidade, em
junho de 1993, concomitante a uma atrocidade se par, onde vários escritores são
assassinados na Argélia. Face a esses crimes, um grupo de cinquenta escritores
e intelectuais europeus e americanos, apoiando-se numa ideia do sociólogo
francês Pierre Bourdieu, que propõe a fundação do Parlamento Internacional dos
Escritores (International Parliament of
Writers - IPW).
O apelo é
enviado a mais de duzentos escritores do mundo inteiro e aceito unanimemente.
Reivindicando
a autonomia da literatura em relação aos diferentes poderes e insistindo na necessidade
de uma estrutura capaz de organizar um movimento de solidariedade
internacional, o grupo funda o parlamento em novembro de 1993.
O trabalho
do Parlamento exige instâncias de deliberação e de execução. Isso resulta na
criação de um Conselho, presidido por Salman Rushdie e composto por Adonis
(poeta libanês), Breyten Breytenbach (escritor sul-africano), Carlos Fuentes
(escritor mexicano), Édouard Glissant (escritor martinicano), Jacques Derrida
(filósofo francês), Pierre Bourdieu (sociólogo francês) e Toni Morrison
(escritora americana).
“Os
escritores são os cidadãos de muitos países – o país limitado e ladeado pelas
fronteiras da realidade observável e da vida cotidiana, o reino infinito da
imaginação, a terra semiperdida da memória, as federações do coração
simultaneamente incandescentes e geladas, os estados unidos do espírito (calmos
e turbulentos, largos e estreitos, regulados e desregulados), as nações
celestes e infernais do desejo e, talvez a mais importante das nossas moradas,
a república sem entraves da língua.
São esses
países que o nosso Parlamento dos Escritores pode, sinceramente, e com tanta
humildade quanto orgulho, pretender representar. Em conjunto, eles englobam um
território bem maior do que o jamais governado por qualquer potência terrestre;
no entanto, as suas defesas contra esse poder podem parecer muito fracas.
A arte da
literatura exige, como condição essencial, que o escritor possa circular entre
aqueles numerosos países como bem entender, sem necessidade de passaporte ou visto,
fazendo o que quiser com eles e consigo mesmo. Nós somos mineiros, ourives,
homens sinceros e mentirosos, bufões e chefes, mestiços e bastardos, pais e
amantes, arquitetos e demolidores. O espírito criador, por natureza, não tem
limites nem fronteiras, rejeita a autoridade dos censores e dos tabus. É por
essa razão que ele é frequentemente tratado como inimigo por potentados fortes
ou insignificantes, os quais atacam a arte por construir imagens do mundo que
ferem ou sabotam as suas próprias representações, mais simples e menos francas.
No entanto,
não é a arte que é fraca, os artistas é que são vulneráveis. A poesia de Ovídio
sobreviveu; a vida de Ovídio foi miserável por causa dos poderosos. A poesia de
Mandelstamm continua viva; o poeta foi assassinado pelo tirano que ele ousou
nomear. Hoje, no mundo inteiro, a literatura continua a se opor à tirania – não
de maneira polêmica, mas negando-lhe a autoridade, trilhando o seu próprio
caminho, declarando a sua independência. O melhor da literatura ficará, mas nós
não podemos esperar do futuro que ele a libere das cadeias da censura. Muitos
autores perseguidos também sobreviverão, de uma ou de outra maneira, mas nós
não podemos esperar em silêncio o fim de sua perseguição.
O nosso
Parlamento dos Escritores existe para lutar pelos escritores oprimidos e contra
todos os que os perseguem – a eles e a suas obras – e para renovar
incessantemente a declaração de independência, sem a qual a escrita é
impossível; e não somente a escrita, mas o sonho; e não somente o sonho, mas o
pensamento; e não somente o pensamento, mas a própria liberdade.”
Salman Rushdie
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