Quando eu era menina / bem pequena, /
em nossa casa, / certos dias na semana / se fazia um bolo, / assado na panela /
com um testo de borralho em cima. / Era um bolo econômico, / como tudo,
antigamente. / Pesado, grosso, pastoso / (por sinal que muito ruim). Eu era
menina em crescimento. / Gulosa, / abria os olhos para aquele bolo / que me
aprecia tão bom / e tão gostoso. / Era só olhos e bocas e desejo / daquele bolo
inteiro.19 Minha irmã mais velha / governava. Regrava. / Me dava uma fatia, /
tão fina, tão delgada... / E fatias iguais às outras manas. / E que ninguém
pedisse mais! / (...) Era aquilo uma coisa de respeito. / Não pra ser comido /
assim, sem mais nem menos. / Destinava-se às visitas da noite, / certas ou
imprevistas. Detestadas da meninada (Coralina 1993:53-57). Tudo de melhor para
os adultos / para as crianças, prato feito, regrado, medido. / Coisas boas,
guardadas, defendidas no alto dos armários. (...) Lembro de minha insatisfação
com o que me davam / em racionamento constante: chocolate. / Coisa mais gostosa
do mundo, feitos com tabletes de chocolate Beringh, / raspado e batido com gema
e açúcar, / até perder o cheiro característico do ovo. / Faziam nas casas pela
manhã, me davam uma tigelinha minúscula, / tigela grande, tigelona enorme para
os adultos./ Eu ali goderando sem mais. / Meu desejo de criança, escondido,
reservado, dissimulado, de crescer, / virar gente grande e me fartar de
chocolate com cacau Beringh / e gema batida (Coralina 1984:119-122). Aquela
gente antiga era sábia / e sagaz, dominante. / (...) Como sabiam com tanta
segurança / e autoridade? / Eram peritas em classificar as frutas: / Quente,
fria e reimosa. / Quente, abriam perebas nas pernas, na cabeça, / pelos braços.
Fria, encatarroava, dava bronquite. / Reimosa, trazia macutena. (Coralina
1984:51).
Em: Cora
Coralina: a Poética do Sabor
Andréa
Ferreira Delgado Centro de Ensino e Pesquisa Universidade Federal de Goiás
O que dizer dessa Poeta Maior...!?!
Lê-la nos faz desistir de pensar um
poema
Muito menos traça-lo
Não por fazer-nos menor
Mas por fazer-nos saber
Que nada sabemos do tema.
090.k cqe