A primeira
impressão foi de profundo pesar e consternamento. Naquele instante
manifestou-se o menino de trinta e poucos anos - menino sim, tornei-me gente,
no mínimo, aos quarenta -, tocado com a notícia do incêndio. Instantaneamente,
junto com a angústia, veio à mente a visita no final do século passado
à catedral. Impossível de ser narrada; o coroinha da cidadezinha rural fincada
no meio do nada nos confins do país visitando um dos mais significativos
monumentos religiosos do planeta, por conta própria. Um prêmio merecido aos
dedicados esforços iniciado aos dez anos nas mais diferentes lidas para manter
a si e a família e que ainda não haviam cessado. As sensações no evento não
eram de alegria. Também não se tratava apenas do contentamento pueril até então
vivenciado. É muito mais. É uma alienação; um estar fora. Alheio. Não
acessível. A alegria que suplanta os sentidos não pode parar na felicidade. No
entanto a felicidade não consegue suplantar a alegria e o estado momentâneo é
indescritível, ainda que não seja vivido na sua perfeição. Portanto, mesmo que
tenha sido alicerçado somente por uma visita despretensiosa e conduzida, embora
extremamente significativa, deparar-se com a tragédia foi como uma concussão
cerebral que bloqueou o espaço de duas décadas de percepções outras, do agora
diligente - extremamente diferentes do menino que comovido com o até então
desconhecido clima gótico, sepulcral, impenetrável à multidão que
desavisadamente agredia o espaço quase contaminando a energia singular do
ambiente -; daquele que ainda não aprendera a ler nas entrelinhas.
Vinte e
quatro horas depois; ainda comprometido com o clima de particular comoção,
recobro a consciência após um segundo choque, quando Minha Sempre Bem Amada
alertou-me; “E se foi premeditado?”.
Recomponho-me
após suas sempre ponderadas e imparciais observações e contrariado me permito
admitir. É possível. Baseando-me na tresloucada situação atual da política mundial,
particularíssima da França e embaraçosa da Europa, somada a
desvairada condição humana. E então acorro à razão e ao senso crítico e,
recuperando minha lucidez, recorrendo aos históricos baseados em duas décadas
de observações ininterruptas da capacidade do homem de buscar livrar-se do que
lhe incomoda ou de situações sem saída fácil, onde as encontra em jogos mentais
inimagináveis ao homem comum ao qual, por conta da fraqueza, se obriga a lançar
mão dos atos mais execráveis. E o faz às sombras; em conjunto a um rabo de
cometa de seguidores análogos que estudam todas as formas de sair de uma
sinuca-de-bico insolúvel para uma opção que soma solução e ganho, isto é,
obtém-se do sinistro não apenas o salto do fétido esgoto em que se estava metido
para a borda, mas: para muito além da região perigosa; salvando todo o
histórico e recebendo delituosamente as honras da solução previamente
arquitetada. Isto posto, sou obrigado a concordar com a possibilidade do crime.
A
inteligência humana para arquitetar o inimaginável é diametralmente igual em
poder e força à necessidade da crença que atinge todos aqueles que, por falta
de consciência crítica aderem ao “comportamento de manada” frente a enredos bem
construídos.
Dias
outros; novas tristezas - Novamente a tristeza se manifesta - é-nos,
impossível, em uma única existência, acessá-las todas. Um acidente pode levar a
criatividade humana ao ficcional romantizado, à originalidade das dissertações.
Um crime bem planejado também, mas então o autor, desavisado, corre o risco de
a verdade vir à tona e sua imaginação ser traída de alguma maneira e,
inadvertidamente, haver-se com o imbróglio da mácula ou coisa que o valha.
Invariavelmente
a criatividade sufoca em algum grau aquele que transcende o lugar comum. Se se
é bom no que faz pode ser levianamente elogiado ou, no sentido contrário,
despeitadamente criticado. O belo somente poderá ser verdadeiramente
reconhecido por uma fração mínima nem sempre disponível no mesmo espaço... ou
sob o Caleidoscópio do Tempo.
De alguma
maneira, ainda que se tratando de mais um, foi assim que me senti nestes dois
dias. Relembrei, transitando da dor pura e romantizada de um menino ainda bobo
e sentimentalóide a dor da razão; aquela que ataca o homem já contaminado que chafurda
junto a uma construção humana inflamada para o espetáculo, apagada à realidade e à espreita covardemente sinistrada em suas vontades.
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