“Uma das
principais funções de um amigo é suportar (sob forma atenuada e simbólica) os
castigos que nós gostaríamos, mas não temos possibilidade, de infligir aos
nossos inimigos” p216
Passou a
mão pelos olhos, como se procurasse apagar da lembrança a imagem daquelas longas filas de anões idênticos nas mesas de
montagem, daquelas manadas de gêmeos enfileirados na entrada da estação do
monotrilho de Brentford, daquelas larvas humanas que rodeavam o leito de morte
de Linda, da fisionomia incessantemente repetida de seus agressores. –
Horríveis! p266
“- É um
absurdo. Um homem decantado como Alfa, condicionado como Alfa, ficaria louco se
tivesse de fazer o trabalho de um Ípsilon Semialeijão; ficaria louco ou se
poria a destruir tudo. Os Alfas podem ser completamente socializados, mas com a
condição de que se lhes dê um trabalho de Alfa. Somente a Ípsilon se pode pedir
que faça sacrifícios de Ípsilon, pela simples razão de que, para ele, não são
sacrifícios. São a linha de menor resistência. Seu condicionamento fixou
trilhos ao longo dos quais ele tem de correr. Não tem outro remédio, está
predestinado. Mesmo depois da decantação, ele fica sempre dentro de um bocal,
um bocal invisível de fixações infantis e embrionárias. Cada um de nós, é claro
– continuou meditativamente o Administrador -, atravessa a vida no interior de
um bocal. Mas, se somos Alfas, nosso bocal é relativamente enorme. Sofreríamos
intensamente se nos víssemos confinados num espaço mais estreito. Não se pode
pôr psudochampanha para castas superiores em bocais de casta inferior.
Teoricamente, isso é óbvio.” P267
“- Sim – continuou Mustafá Mond -, essa é outra parcela no custo da estabilidade. Não é somente a arte que é incompatível com a felicidade, também o é a ciência. Ela é perigosa; temos de mantê-la cuidadosamente acorrentada e amordaçada.” p270
“- Às vezes
lamento haver renunciado à ciência. A felicidade é uma soberana exigente,
sobretudo a felicidade dos outros. Uma soberana muito mais exigente do que a
verdade, quando não se está condicionado para aceita-la sem restrições. –
Suspirou, tornou a calar-se, e logo recomeçou, com mais vivacidade: - Enfim, o
dever é o dever. Não podemos consultar nossas preferências pessoais.
Interesso-me pela verdade, gosto da ciência. Mas a verdade é uma ameaça, a
ciência é um perigo público. Ela é tão perigosa hoje quanto foi benfazeja no
passado. Deu-nos o equilíbrio mais estável que a história registra.” p272
“Mas não
podemos permitir que ela (a ciência) desfaça a boa obra que realizou. Por isso
limitamos com tanto cuidado o círculo das pesquisas; por isso estive a ponto de
ser mandado para uma ilha. Nós permitimos apenas que ela se ocupe dos problemas
mais imediatos do momento. Todas as demais pesquisas são ativamente
desestimuladas. É curioso – prosseguiu, depois de pequena pausa – ler o que se
escrevia na época de Nosso Ford sobre o progresso científico. Segundo parece,
imaginavam que se podia permitir que ele continuasse indefinidamente, sem
consideração a qualquer outra coisa. O saber era o mais alto bem; a verdade, o
valor supremo; tudo o mais era secundário e subordinado. É certo que as coisas
já então estavam começando a mudar. Nosso Ford mesmo fez muito para diminuir a
importância da verdade e da beleza, em favor do conforto e da felicidade. A produção
em massa exigia essa transferência. A felicidade universal mantém as
engrenagens em funcionamento regular; a verdade e a beleza são incapazes de
fazê-lo. E, é claro, cada vez que as massas tomavam o poder público, era a
felicidade, mais do que a verdade e a beleza, o que importava. Não obstante, e
apesar de tudo, a pesquisa científica irrestrita ainda era permitida.
Continuava-se a falar na verdade e na beleza como se fossem os bens supremos.
Até a época da Guerra dos Nove Anos. Ela fez com que mudassem de tom, posso
garantir-lhes. Que valor podem ter a verdade, a beleza e o conhecimento quando
as bombas de carbúnculo estouram em torno de nós?” p273
- O senhor
poderia igualmente perguntar se é natural fechar as calças com zíper – retrucou
o Administrador sarcasticamente. – Fez-me lembrar outro desses antigos, chamado
Bradley. Ele definia a filosofia como a arte de encontrar más razões para
aquilo em que se crê por instinto. Como se nós acreditássemos em alguma coisa,
seja o que for, por instinto! Cremos nas coisas porque somos condicionados a
crer nelas. A arte de encontrar más razões para aquilo em que se crê por outras
más razões, isto é a filosofia.” p280
“- Meu
jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de
heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade
convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser
nobre ou heroico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis
para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde houver guerras, onde houver
obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver tentações a que
se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja
preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum
sentido, Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar
amores extremados, seja por quem for. Não há nada que se assemelhe a obrigações
de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal modo que ninguém pode
deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável,
deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há,
verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum
acaso infeliz, ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa de desagradável,
bem, então há o soma, que permite uma fuga da realidade.” P 283
Admirável
Mundo Novo
Aldous Huxley
Biblioteca
Azul
*
Quais
escravos
...e os
escravos da nova era já não têm cor, têm cores. Quais àqueles: se lhes fosse
dada a alforria pouco poderiam fazer por não entenderem o significado muito
menos o sentido da liberdade.
047.q cqe