sábado, 7 de julho de 2018

Carta ao rei



A Francisco I

Imperador do Sacro Império Romano-Germânico

Frankfurt, 5 de junho de 1753

Sire, é menos ao imperador do que ao mais honesto homem da Europa a quem ouso recorrer em circunstância que talvez o surpreenda, mas que me faz aguardar em silêncio por sua proteção.
Vossa sagrada Majestade irá permitir-me primeiro expor como o rei da Prússia conseguiu que eu, em idade avançada, deixasse minha pátria, minha família, minhas ocupações. A cópia anexa, que tomo a liberdade de confiar à infinita condescendência de Vossa sagrada Majestade, irá deixa-la ao par.
Após a leitura da mencionada carta do rei da Prússia, é natural surpreender-se com o que acaba de acontecer às ocultas em Frankfurt.
Mal cheguei a cidade, em 1º de junho, um sr. Freytag, residente em Brandemburgo,  veio ao meu quarto, escoltado por um oficial prussiano e um advogado do Senado, chamado Rucker. Pediu-me um livro impresso, contendo as poesias do rei seu senhor em versos franceses.
Trata-se de um livro sobre o qual detenho alguns direitos e com que o rei da Prússia me agraciara quando distribuiu obras suas de presente.
Declarei ao sr. Freytag estar pronto a devolver ao rei seu senhor os presentes com os quais me honrou, mas que aquele volume talvez ainda se encontrasse em Hamburgo, em uma caixa de livros pestes a ser embarcada. Acrescentei estar a caminho da estância termal de Plombières, quase moribundo, e supliquei que me permitisse seguir meu caminho em paz.
Ele respondeu que postaria guardas à minha porta e me obrigou a assinar um papel, em que eu me comprometia a não partir até que as poesias do rei seu senhor fossem devolvidas. Entregou-me um bilhete de seu punho, concebido nos seguintes termos: “Assim que chegar o volume que o senhor diz encontrar-se em Leipzig ou Hamburgo, e me houver entregue a Oeuvre de Poëshie, como determinou o rei, poderá partir para onde bem lhe aprouver.”
 Escrevi imediatamente a Hamburgo para que despachassem a Oeuvre de Poëshie em razão da qual me encontro prisioneiro em cidade imperial, sem formalidade alguma, sem qualquer mandado, sem sequer um arremedo de justiça. Não importunaria Vossa sagrada Majestade caso se tratasse apenas de ficar prisioneiro até que a Oeuvre de Poëshie exigida chegue a Frankfurt. Porém, alertam-me que, acreditando agradar a seu amo, o sr. Freytag talvez alimente desígnios mais violentos, aproveitando-se do profundo sigilo que ainda acoberta toda essa aventura.
Longe de mim suspeitar que, por causa desse objeto, um grande rei chegue a extremos que seu status e dignidade desaprovariam – assim como sua justiça -, contra um ancião moribundo que tudo lhe sacrificou, que jamais lhe faltou, que não é seu súdito, tampouco mais seu camareiro, e que é livre. Até eu julgaria um crime respeitá-lo tão pouco, temendo uma ação odiosa de sua parte... Em contrapartida, nada diz que seu emissário não chegue às vias de fato, na ignorância em que se acha relativa aos sentimentos nobres e generosos de seu soberano.
É nesta cruel situação que um doente moribundo lança-se aos pés de Vossa sagrada Majestade para instá-la a dignar-se ordenar que nada se atente contra as leis, contra a minha pessoa, em sua cidade imperial de Frankfurt.
Ela pode ordenar a seu ministro nessa cidade que me tome sob sua proteção, ou recomendar-me a algum magistrado ligado à sua augusta pessoa.
Vossa sagrada Majestade dispõe de mil instrumentos para proteger as leis do Império e de Frankfurt e não creio que vivamos em tempos tão sombrios que um sr. Freytag possa impunemente tornar-se senhor da pessoa e da vida de estrangeiro na cidade onde Vossa Majestade foi coroada.
Gostaria de, antes de morrer, ser feliz o bastante para, por um momento, ajoelhar-me a seus pés. Sua Alteza real, a sra. Duquesa de Lorena, honrou-me com gentilizas. Aliás, acredito que Sua Alteza real levasse a indulgência a ponto de não se mostrar descontente se porventura me couber a honra de me apresentar e lhe falar.
Suplico a Vossa Majestade imperial escusar a liberdade que tomo ao escrever-lhe e, sobretudo, fatigá-la com tão longa epístola; mas sua bondade e justiça são minhas desculpas.
Igualmente suplico que perdoe minha ignorância, caso tenha faltado com algum dever nesta carta, que consiste tão somente em pedido sigiloso e subserviente. Vossa Majestade já se dignou a acenar com um sinal de suas bondades; aguardo um de sua justiça.

Com o mais profundo respeito etc.

Voltaire

Do livro:
Voltaire
Cartas Iluministas
Zahar
P167





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