sábado, 29 de setembro de 2018

“A Voz do Fogo”








...

E é verdade.

Ela cai sobre mim, a certeza espantosa, e me esmaga. Quero morrer, ou melhor, queria ter morrido antes que este fato desanimador e deprimente pudesse me matar, antes de eu descobrir quanto somos pobres e que tudo está em ruínas. Embora meu rosto ainda esteja fervendo, meus olhos já transbordam, lágrimas que ardem como se fossem de vinagre. Atrás de mim a porta está se abrindo. Ouço o som de muitos pés se arrastando, sei que são os homens da aldeia, vieram para me matar, mas não consigo olhar para eles por vergonha: não quero que testemunhem meu estado, vejam Roma assim.

Por fim ergo a cabeça. Eles se avolumam em um bloco maciço diante da porta, com bordões enormes em punho, o homem sombrio à frente, com sua pança e seu topete. Eles olham para mim, rostos de pedra e sem expressão, olham para o pequeno romano, enquanto ele chora sobre as suas balanças. Se é repugnância o que eles sentem por esta cena, ela não é mais forte do que a minha própria. Eles se entreolham e o homem sombrio dá de ombros. Vão me matar agora. Ajoelhado no chão, fecho os olhos e espero o golpe. Baixa um silêncio decisivo.

Em seguida, muitos passos descendo as escadas, uma avalanche de madeira e couro. Ouço o bater de portas distantes. Abro os olhos. Os homens se foram.

Eles viram em meu rosto. Eles viram em mim um homem já morto, a quem não valia a pena assassinar. Roma morreu. Roma morreu, e para onde irei agora? Não para a casa. Meu lar é uma fachada de papel, descascando, desbotada por um sol de ouro falso, pirita barata. Não posso ir para casa, e quem, quem mais me receberia?

Fico agachado, olhando fixamente para as moedas, uma falsa, a outra mais falas ainda, até a luz começar a enfraquecer e as duas se transformarem em borrões pálidos na penumbra, sem necessidade de serem distinguidas. Uma sombra cai sobre o semblante nobre.

A escuridão invade o quarto. Não posso suportar estas trevas, que encobre qualquer tentativa de definição. Levando e cambaleio, tal como num sonho, primeiro descendo as escadas. Depois, atordoado, erro pelas ruas. As celebrações já estão começando, as ruas carregadas do fedor de uma vida brutal. Eles mijam nas entradas das casas, dão com remos nas cabeças uns dos outros, e riem, e se ajoelham no próprio vômito. Fornicam pelos muros dos becos feito prisioneiros. Peidam e gritam, são tudo que resta, tudo que existirá. Com movimentos lentos, escapo de seus empurrões obscenos. Um jarro de cerveja é colocado com força na minha mão. Com sorrisos vis, me pegam pelo braço, beijam meu rosto marcado pelas lágrimas e me atraem para que eu me junte a eles.

Alan Moore

no livro A Voz do Fogo

Capítulo 
A cabeça de Diocleciano – 290 d. c. 153p.
editora Conrad





094.p cqe

domingo, 23 de setembro de 2018

Não nos adiantemos em julgamentos



Ainda sobre o além do seu tempo - No plano da associação, o nosso, as criações, nenhuma, pode realmente ser descartada. 

O que hoje parece uma excentricidade ou singularidade despropositada; pode ser o elo que falta do quebra cabeças em outro estado/tempo ausente e ainda desconhecido do que agora é considerado loucura.



Assim é no terreiro quanto nas esferas.



094.p cqe





Tarde demais










Em se tratando de acontecimentos convencionais, nossa primeira ação, nosso cartão de visitas, nossa “objetiva” deve antes projetar o respeito, e somente então observar, receber com as devidas atenções as informações terceiras e reagir com inteligência. Qualquer outra prática em desarmonia à cordialidade sofrerá o efeito em maior ou menor grau da desconfiança ou quebra total desse acordo implícito.

















Como diria o velho mestre; era preciso trabalhar com a hipótese radical de que sempre nos decidiremos tarde demais a aceitar o resultado de nossas animosidades gratuitamente ordinárias; afinal é certo que ao toque do arrependimento, possivelmente será difícil alcançar todos aqueles que procurarmos para as tardias e tão devidas quanto sinceras desculpas.



093.p cqe

Só há o ir II



Nós sobre nós - Na inequívoca perfeição divina; na lição primeira Dele sobre altruísmo e generosidade: liberta sua gênese sem pretensão alguma sobre a obra – afinal A Confiança, digna Dele, herança nossa; poucos de nós já acordamos. E à vista orgânica mais atenta: sob a proteção mais sutil que se possa imaginar; mais parecida com nenhuma. Entregando a cada um dos Seus a decisão única e intransferível da própria e inegociável arte: a responsabilidade de se tornar Belo.

*


Nosso toque

Deus faz os esboços retirando, minimamente, as partes grosseiras e arestas de nossas almas, deixando a nós, artistas natos, as pinceladas finais, o burilamento do que somos; é nosso o toque final.

*


Como bonecos mal formados, erramos entre planos. 
Conforme caminhamos entre as esferas nossa atenção burila personalidades próprias com picaretas, talhadeiras, formões e cinzéis. Não há retorno, como não há termo à jornada assim que é dada a partida. Desesperança a um, motivo de alegria a outro, mas o fato de que só há o ir pode ser alento revigorante e enérgico a todos a partir do instante que há o entendimento. 


092.p cqe

sábado, 15 de setembro de 2018

Nosso Aqui e Agora


Se o tempo não existe isto confere a nós obviamente o estar no nosso aqui e agora obrigado aos registros deste diminuto flagrante do universo; de posse tão somente desse crédito. Estamos subordinados ao entendimento empírico exclusivo, determinado e possível a cada um que a sua maneira este desvenda. A obrigatoriedade do registro por se fazer exclusiva torna a todos senhores à assenhorar-se do epistemológico e assim predicar sob seu governo pessoal o espelhamento real próprio do entendimento único sobre, para si, o que discerne de tudo o que lhe apresenta na sua totalidade o espírito do tempo até então palpável.















Em verdade nunca foi uma questão de autoridade, ao menos não a obstinação vulgarizada e estimulada, validada sob a égide de nomenclaturas imodestas. Portanto é privilegiado com as maiores pepitas todo aquele que incansável se debruça sobre a montanha impossível e faz do seu esforço uma busca silenciosa, visando o desenvolvimento humano; os quais o universo premia a todos reservando oras especiais a estes determinados que procuram discernir o que está além do homem molecular.




091.p cqe 





A probabilidade de dar errado realmente é maior?


São nossas vontades superdimensionadas sob o manto do que designamos de cultura; essa película a empanar o epistemológico, que nos distancia insistindo em não nos ater ao processo natural. Por conta desse aferro contra, acabamos nos posicionando sempre adiante do compasso da natureza e dos alinhamentos necessários aos acontecimentos e, portanto, vivendo a incerteza dos resultados.


Uma vez que nos rendêssemos ao equilíbrio com o universo, nossas respostas não seriam pautadas pela esperança suposta, se acaso, e raramente, as tivéssemos em formas outras, inesperadas; conjuntamente carregaríamos também a ciência de que todo o processo é natural e a partir daí, organicamente, aceitas com a mesma naturalidade; bem ao contrário da obrigatoriedade e expectativas às apostas a que estamos sujeitos.

*









Nossa espantosa falta de atenção e toda uma carga cultural de comportamento atropelado decorre invariavelmente do acreditar que todos somos iguais – ou do confiar genérico nessa convenção -, e ao primeiro instante em que ouvimos algo que nos pareça ser contrário ou contraditório acorremos à negativa, quando em verdade a questão de discordar peremptoriamente do que nos está sendo apresentado diz respeito tão somente ao fato de que na verdade não somos todos iguais ou não estamos no mesmo nível de compreensão, aliás, bem longe disso. De posse da nossa natureza forjada o que se apresenta, somado ao orgulho de admitir que algo que não pensamos possa sob honestos aspectos ser mais verdadeiro do que essa realidade construída: é nos folgar na opção menos incômoda apostando na premissa do homem moderno e admirado, mecanicamente recompensado por suas respostas rápidas – aí, apropriadas - tão menos importante.













A prática nociva aponta fatalmente para o caminho fácil quando optamos por aceitar convenientemente ou preguiçosamente como uma realidade apropriada o conviver despreocupado e raramente questionado.







090.p cqe 





12/9 - do astro soturno














Citando este tempo e insistindo sobre o fato de que todos têm a mesma dificuldade em revelar do que realmente aqui tudo se trata – referindo-se aos humores que insistimos em apaziguar; para ele, uma condição humana, hoje, quase natural, disse; “aproveite-se do meu quase sempre traidor e instintivo ímpeto; ele poderá revelar muito sobre do que não se trata. Quando raramente consigo domá-lo, dou preferência o meu lado eremítico soturno, reservado, misantropo. A despeito de tudo somam-se ganhos no desconhecimento mútuo, porém a cada dia mais me culpo por não ser fiel a mim mesmo; das negociatas necessárias e da falta de segurança”. Ao chegar-se a mim, finalizou, aproveite o que não sou realmente – essa prática estenderá nossa estada juntos -, dificilmente nos é permitido mostrar-nos incorporados de nossa verdadeira natureza mais querida.




089.p cqe









sábado, 8 de setembro de 2018

Barril desarranjado












A exposição visceral leva à reação de igual monta - Adam Smith ensina que é da observação das reações externas que ajustamos nossas ações para o que é correto. A partir desta máxima; com que grau de acerto e preocupação devemos avaliar as barbaridades que assistimos com a universalidade do apreçamento, a apropriação da coisificação, com o advento da explosão do acesso tecnológico e a intumescência das redes sociais imaginando quão mal dimensionada está a visão tendenciosa, parcial e partidária polarizante a respeito de correção aí exposta, e daí: quanto desse barril desarranjado – da mera curiosidade e despreocupação ao muito absurdo - inadvertidamente tenderá à normalidade?

Desce o pano





088.p cqe





Uma companheira justa e inseparável...



...que não é eterna; valorizemo-la então, enquanto nos acompanha.

A morte não é para ser temida, mas ai daquele que não a teme reivindicando vontades próprias sem antecipar um instante o que lhe aguarda o existir.



087.p cqe





A felicidade que eu quero



Quanto mais feliz seríamos se nosso bem estar atingisse o volume imaginado por todo aquele que estupidamente o cobiça?

 

Cenas clássicas de felicidade plena se repetem nos lugares mais inusitados do planeta. Homens e mulheres saboreando momentos de extrema alegria, beleza e harmonia ou simplesmente sob atmosferas dessa ordem. Finíssimos cruzeiros pelo mundo, iates, carrões, cafés, teatros, museus e praias de águas de inigualáveis matizes, ou sob a égide de um conviver frugal, por exemplo.


O conjunto é perfeito, tudo é real. Por trás das cenas; anos de dedicação e trabalho. Inúmeras delas se repetem entre períodos bastante longos. No entanto existe uma gama absurda de pessoas que nunca leva isto em consideração.


Estes também, enquanto perdem tempo apreciando, desabonando por conta de culturas e educações encabrestadas e invejando flagrantes tão perfeitos quanto raros compartilhados entre alegres apreciadores; continuarão apenas imaginando-se em instantes copiados e outros tantos a eles, para sempre, intocáveis.


Por conta deste desperdiçar, ao observar cobiçando o alheio, contrariados e culpando inadvertidamente também a sorte, por não desfrutarem de igual benesses. Enganam-se uma vez mais ao confiar em seus sentidos falhos supondo e acreditando que a diversão que assistem é parte do cotidiano destes lutadores, ao julgarem inadvertidamente que as desejadas ações refletem o cotidiano habitual; a forma usual como vivem seus invejados.



Este texto foi originado da máxima;
eles veem as pingas que tomo, mas não imaginam os tombos que levo.






086.p cqe







O paradoxo do buscador




cada vez – ocupado com o +


*



O paradoxo do buscador

Mais excelência

Menos excesso

085.p cqe

Da Dialética




busco algo fora de tudo

não quero o dentro

o inserido

nem mesmo fora do rotulado

mais


fora do que há 

fora do mundo 

fora do universo

quero o registro esculpido no muro

outra vez cunhado no granito

quero o não entendimento acessível

mais


desejado

não quero nada

não o particular

mas a partícula

O Néctar

não o #

mas

O ≠

O Único.


084.p cqe

sábado, 1 de setembro de 2018

Ser humano, hoje




Ser humano hoje é coabitar em meio a uma miscelânea de incompreensões e desentendimentos convictos de que ainda que sejamos sufocados por dezenas de atribulações entendemos estar bem em um mundo muito melhor do que o vivenciado por nossos antepassados.

*

Deparar-nos-íamos em um absurdo estado de incongruências se nos comprometesse a imaginar como seria a condição particular de cada indivíduo por mais imparcial e precisa que fosse a forma encontrada para avalia-las. Como trabalham seus raciocínios nas suas particularidades. Principalmente porque a cada dia menos resistimos na singularidade ou existimos no individual, e também por conta do camuflar cada vez mais obrigatório exigido para se manter minimamente conectado a comunidade. A criatura totalmente despreparada está por sua conta e risco, afora alguns meios abastados onde mantem-se provisoriamente protegida – o que significa somente vantagens pontuais.

São milhões de partidos. Polarização de toda ordem. Familiar, profissional, de amizades; as quais se formam a cada dia mais e novas e a todo instante: com exorbitantes vantagens às virtuais.

Encontrar e manter-se em algum tipo de zona de conforto, qualquer que seja que dê ao sobrevivente segurança precária tornou-se uma vergonhosa condição obrigatória. Em um futuro longínquo, é possível que aconteçam alguns estudos apontando que o humano, o animal que desenvolveu as melhores ferramentas de adaptação, tenha que assumir dois pontos maculares fortíssimos fundamentais consolidado em nosso mapa evolutivo que ostentamos com tanto orgulho: que o homem obrigou-se à zonas estéreis onde se sente menos ameaçado não apenas por conta dos caminhos que o conduziram a ela, mas as pesquisas descobrirão também que há um viés psicossocial aí inserido; como nossos ancestrais encontraram soluções para sua sobrevivência sem o tino adequado obviamente, também agora, descobrimos que a melhor forma de nos manter minimamente sociáveis é agarrando-nos ao primeiro tronco que aparecer – confinados às cavernas. Na outra ponta não seria de se admirar que os escrutínios apontassem que o hereditário e perpétuo grupo administrador sabia o tempo todo dessa deficiência e aproveitou-se a exaustão da vantagem secularmente oportuna.     
          
*


Alguns poucos homens preocupados e atentos ao desenvolvimento asseveram que nunca o ser humano como indivíduo esteve tão só, ao mesmo tempo em que jamais teve a noção de fazer parte do mundo com tanta força e convicção. Acreditando que pode ser alguém – quando não o é, e está muito longe disso -, que tenha seus valores respeitados. Ter dignidade. Que é livre para gritar por suas vontades e ideologias. No entanto o cordão umbilical com o mundo jamais esteve tão esgarçado. Somente o indivíduo não sabe que está só e mais, em tempo algum esteve tão só.







A socialização vertiginosamente conversora conseguiu arrebanhar o indivíduo em nichos religiosos, nichos imperceptivelmente viciantes que os mantêm aficionados e dependentes. O que algumas percepções alcançam vez por outra e não podem lutar contra é a prisão – de segurança psicológica máxima - a que estão inseridos, mas a condição existencial se fechou a tal ponto que não é possível o grito, o pedido de socorro – se se conjecturasse a mínima intenção. A verdade é que ele nem é expressado; existe uma conivência filial, quase sacralizada, uma espécie de sacerdócio à submissão em todas as instâncias e graus.

Ser humano hoje é não ser, é ser o externo. É ser um vários membros, isto é, fazer parte de algo que ainda chamamos família - ou não, mais cedo do que nunca -, e daí ser, tornar-se membro de inúmeras outras comunidades que nos mantém dentro de um ciclo, uma espiral compreendida e compartilhada por todos como: estes são os nossos tempos; e ainda que não pensemos nisso, pois não se pensa mais em nada fora disso, associa-se com participações coadjuvantes - que assim entende, afinal tudo é formatado para se ser o personagem principal - de amantes de toda ordem a preencher os dias.












Em tempo.: Pá de cal


Grupos alternativos - E sobre a obrigatoriedade de fazer parte de partidos outros, alternativos, descolados, da hora; de filiar-se e se engajar e lutar contra o status quo; grupinhos, grupelhos e suas tribos de revoltados. Não há a mínima possibilidade de se ser um ser só. Então é preciso estar engajado, unido; do contrário você se torna uma espécie de pária, de proscrito, esquisito – então é necessário estar muito bem resolvido para segura essa onda. E enquanto estes autointitulados outsiders descolados - agitadores escolarizados - se revezam, se multiplicam, se associam; não captam que são observados e se demoram a perceber que também eles são permitidos – sua luta é assistida; seu engajamento é monitorado.

Fazer parte de um grupo que se autodenomina amotinados tramps pode ser um estilo de vida, um instante de rebeldia bastante sadio; ou a insistência continuada de se mostrar apenas um teimoso covarde e inconsequente quando invariavelmente se está em verdade optando por fazer parte de mais uma solução anódina lúdica encontrada para também passar os dias.

*





Em momento algum estivemos tão só – inclusive, obrigados – e com tanto a nossa disposição para a derradeira e inegociável introspecção, no entanto jamais estivemos tão dispersos, portanto tão longe do auspicioso recolhimento.





083.p cqe