“...
E é verdade.
Ela cai sobre mim, a certeza espantosa, e me
esmaga. Quero morrer, ou melhor, queria ter morrido antes que este fato
desanimador e deprimente pudesse me matar, antes de eu descobrir quanto somos
pobres e que tudo está em ruínas. Embora meu rosto ainda esteja fervendo, meus
olhos já transbordam, lágrimas que ardem como se fossem de vinagre. Atrás de
mim a porta está se abrindo. Ouço o som de muitos pés se arrastando, sei que
são os homens da aldeia, vieram para me matar, mas não consigo olhar para eles
por vergonha: não quero que testemunhem meu estado, vejam Roma assim.
Por fim ergo a cabeça. Eles se avolumam em um bloco
maciço diante da porta, com bordões enormes em punho, o homem sombrio à frente,
com sua pança e seu topete. Eles olham para mim, rostos de pedra e sem
expressão, olham para o pequeno romano, enquanto ele chora sobre as suas
balanças. Se é repugnância o que eles sentem por esta cena, ela não é mais
forte do que a minha própria. Eles se entreolham e o homem sombrio dá de
ombros. Vão me matar agora. Ajoelhado no chão, fecho os olhos e espero o golpe.
Baixa um silêncio decisivo.
Em seguida, muitos passos descendo as escadas, uma
avalanche de madeira e couro. Ouço o bater de portas distantes. Abro os olhos.
Os homens se foram.
Eles viram em meu rosto. Eles viram em mim um homem
já morto, a quem não valia a pena assassinar. Roma morreu. Roma morreu, e para
onde irei agora? Não para a casa. Meu lar é uma fachada de papel, descascando,
desbotada por um sol de ouro falso, pirita barata. Não posso ir para casa, e
quem, quem mais me receberia?
Fico agachado, olhando fixamente para as moedas,
uma falsa, a outra mais falas ainda, até a luz começar a enfraquecer e as duas
se transformarem em borrões pálidos na penumbra, sem necessidade de serem
distinguidas. Uma sombra cai sobre o semblante nobre.
A escuridão invade o quarto. Não posso suportar
estas trevas, que encobre qualquer tentativa de definição. Levando e cambaleio,
tal como num sonho, primeiro descendo as escadas. Depois, atordoado, erro pelas
ruas. As celebrações já estão começando, as ruas carregadas do fedor de uma
vida brutal. Eles mijam nas entradas das casas, dão com remos nas cabeças uns
dos outros, e riem, e se ajoelham no próprio vômito. Fornicam pelos muros dos
becos feito prisioneiros. Peidam e gritam, são tudo que resta, tudo que
existirá. Com movimentos lentos, escapo de seus empurrões obscenos. Um jarro de
cerveja é colocado com força na minha mão. Com sorrisos vis, me pegam pelo
braço, beijam meu rosto marcado pelas lágrimas e me atraem para que eu me junte
a eles.”
Alan Moore
no livro A Voz do Fogo
no livro A Voz do Fogo
Capítulo
A cabeça de Diocleciano – 290 d. c. 153p.
A cabeça de Diocleciano – 290 d. c. 153p.
editora Conrad
094.p cqe