As noites escuras passamos em claro.
Há dois tipos
de niilismos bastante distintos. Um leva ao desespero, ao se descobrir inserido
na ilusão da existência quando não se tem uma base forte a suportar o inegável
estado obscuro finalmente acessado. Aqui podemos negá-lo; consequência comum
por ser uma escolha fácil, ou nos entregar aos piores atos, a inércia, a
passividade que aniquila, ao desanimo, da desistência, render-se a falta de
esperança e até mesmo, desenvolver uma crise patológica, que, em casos
extremos, termina por abandonar a vontade de existir. O segundo é libertador, é
o niilismo que, ainda dentro do material, do molecular, é vital e inimaginável
sob uma perspectiva plana, superficial. Na prática, é a iluminação da
consciência, que nos devolve à vida, à paz, à verdadeira felicidade em pleno
vale de lágrimas; ela não devolve a esperança, porque esperar já não faz
sentido algum, atingido esse estado de ser, tudo É.
Grandes
ícones da história há centenas de anos pontuam seu tempo como o limite do
absurdo do comportar humano. Sócrates, Hobbes, Kant, J.J. Rousseau,
Schopenhauer, e claro, Nietzsche. Estes são apena alguns que observaram o
colapso a que suas gerações estavam caminhando. No entanto ainda estamos aqui
repetindo a ladainha, cometendo absurdos que àqueles jamais poderiam imaginar.
Como isso é possível?
Esta semana
assistimos ao filme Nove Dias (2020). À primeira vista, uma pequena obra de
arte, ainda que não faça referência alguma as causas maravilhosas provocadas
por nossos queridos animaizinhos de estimação, porém está bastante clara a
mensagem das dicotomias, dos antagonismos e paradoxos da vida, do existir, mas
acima de tudo, a possibilidade prodigiosa que é estar vivo após a dádiva recebida
de aqui nascer.
Sim, sim, a
velha máxima do copo meio cheio/meio vazio, ou da antiga fábula dos vendedores
que foram designados a vender sapatos em certa aldeia na Índia onde a grande
maioria andava descalço. O primeiro ligou reclamando. “Que porcaria, chefe,
aqui ninguém usa sapatos”, enquanto o outro liga para a matriz coberto de vontades.
“Maravilha chefe, eles estão andando todos descalços, temos aqui um mercado em
potencial”.
Por que este
Plano Terra é assim, cheio de altos e baixos para uns e um modelo invejado, quando assistimos aos bem-nascidos
fazendo o que bem entendem, uma vez que a grande maioria passa por necessidades
inauditas?
Acabamos de
passar a semana de Carnaval. Como é possível que boa parte da população brinque
o Carnaval durante toda a semana com uma alegria nata ou contagiosa; viagem
para outros estados, comam, bebam, gastem as economias ou mesmo se endividem
para estar junto aos seus pares, e, no último dia, já comecem os lamentos sobre
voltar à rotina, sem se dar conta que na maioria dos casos, é a rotina de
trabalho que os mantem e não as festas intermináveis.
Não vamos ser
hipócritas ou demagogos aqui e sim psicólogos: é claro que eles não reclamam
apenas do retorno ao trabalho. Sem se dar conta, é a condição de existir
generalizada que os mantêm aborrecidos, desconfortáveis, carregados de uma
alegria nervosa, no entanto poucos deles avançam esse pensamento para o além do
dia-a-dia; por que eu enfrento o que enfrento todos os dias? Não há um
questionar sério, ou se há ele não se mantém, ou seja, é muito mais fácil ficar
na opção fácil, primeira, rasa, sem se aprofundar no real motivo do incomodo,
porquê este demanda vontades, pesquisas, correr atrás, sair da zona de
conforto.
Em uma das milhares
de entrevistas às mídias sempre bastante presentes, um grupo de meninas
eufóricas respondem que vão brincar e beber. Empolgadas em uma espécie de
reclamação, ou desculpa ou seja lá o que, apontam o motivo de brindar a folia,
como se a maldizer o trabalho, a faculdade, o chefe, no entanto um ano antes
estavam estudando como loucas e vivendo a base
de drogas para se manterem acordadas para estudar para os testes de fim
de ano ou dos exames nacionais para serem aprovadas e finalmente terem direitos
à universidade, a tão esperada liberdade de morar fora, mesmo em outra cidade,
fazer novos amigos, onde então, após aprovados, tudo se resumia em comemorações
efusivas , e agora, apenas um ano depois, estão excomungando a vida de
universitárias, sim, incompreensível, porém há um ponto que não é analisado em
tudo isso, que é o; por que faço o que faço? Ou; por que não valorizo tudo o
que decidi fazer e as coisas boas que me acontecem?
Apontei esta
semana que há duas espécies de niilismos. A imensa maioria não acessa o sentido
real de nenhum deles. O primeiro porque nossa cultura insiste que devemos
manter a esperança e que o sol nasce para todos, e isto não é de todo
descartável. Ao se insistir no valor da resiliência e na constante luta que
prima o batido slogan, “tudo o que você quer, você consegue” evita-se o estado
de esmorecimento passivo generalizado. E, se se calibrar as vontades um pouco
acima da normalidade vigente, qualquer um de nós atinge determinado grau de singularidade
jamais imaginada àquele que inadvertidamente segue o mantra da resiliência.
Lutamos para
conseguir um emprego e isso remete a todos do mais necessitado ao filhinho de
papai meritocrata, entrar na faculdade, casar, constituir uma família, comprar
bens e então, quando menos esperamos, nos pegamos descontes, isso pode levar a
um estado patológico e até quem sabe ao primeiro niilismo, onde entendemos que
esse caminho não dará em nada; nada do que construiu-se garante a falta de
esperança. Mas isso dificilmente acontece, pois, a tropa de choque logo é ativada...
e o desesperado volta à consciência de massa.
O segundo
niilismo refere-se à conscientização de que a vida está além dos muros que nos
cercam; vencer então a “tropa de choque” e perguntar-se, com espírito de
propriedade: por que tantos vivem como estou vivendo e assim perecem?
A segunda
forma de niilismo é desacreditar tudo o que veio sendo construído e tão somente
pinçar o que niilistas do sistema, àqueles que, dentro de suas faculdades
mentais sãs, deixaram como legado; não a revolução contra o sistema, contra a
cultura, contra a organicidade e fisiologia armada, mas nos mostraram que há
força, há vida, há luz, dentro de cada um de nós, que possuímos poderosíssimas vontades
próprias ainda desconhecidas, não acordadas, e então poderemos também voltar-nos
a um estado, se não próprio, isso aqui não existe, direcionado aos grandes
vultos que, na sua maioria, morreram como se a sua contemporaneidade tentasse
deles se livrar, e somente muito séculos mais tarde foram descobertos, mais
como temas de estudo e ou, para alguns poucos: como respeitáveis ícones a serem
estudados nas entrelinhas.
*
Mas isso tudo
não circula sob um viés organicamente pessimista? Sim, se observarmos sob uma
perspectiva rasa; não, se analisarmos a genealogia íntima do niilismo, somando
ao nada búdico, por exemplo... e, definitivamente não, quando se vive
conscientemente.
Já nas primeiras
lições Meu Mestre pontuou; “antes da iluminação corta-se a lenha e carrega
água, depois da iluminação, corta-se a lenha e carrega água”; demorei muito
analisando esta colocação, esta que é uma das passagens mais lindas que guardo
do início das nossas conversas. E aqui ela se encaixa perfeitamente, afinal
você pode fazer o que faz cotidianamente, viver entre seus amigos e familiares,
trabalhar e se divertir da mesma forma que sempre fez, porém, agora, consciente
de que tudo é parte de uma grande prática e de regramentos mais acertados.
“Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de
luz, mas sim por tornar consciente a escuridão.
CG Jung
*
Senda do
Retorno da consciência à sua verdadeira natureza. Ou seja; retomar posse da sua
vida.
Pravritti-Marga
e Nivritti-Marga São dois movimentos da evolução da consciência.
Segundo
Meister Eckhart, nossa fé só vem das profundezas da alma onde não figuram mais
imagens, conceitos nem atividades de memórias, onde a mente não interage mais
com ela mesma.
São João da
Cruz ensina que todo esse processo é uma aproximação com Deus e acrescenta
“Somente aqueles que Deus quer fazer com que se unam a Ele, Ele os faz
atravessar a noite escura.”
Em uma das
cartas dos Mestres a C. W. Leadbeater, uma passagem remete a representação de
que as: “solidão, abnegação martírio, e morte, são os encantamentos que agem no
coração do discípulo na hora da provação”.
Revista Sophia Nº106
*
Poema de São João da Cruz Noite Escura
da Alma:
Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem
guia
Além da que no coração me ardia.
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
Em meu peito florido
Que, inteiro, para Ele só guardava
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, O regalava,
E dos cedros o leque O refrescava.
Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
Noite Escura da Alma – São João da
Cruz
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