"E o vaivém continua!
Trazem-nos,
levam-nos,
um por um ou em
grupos,
enviam-nos sabe-se lá para onde,
em
levas.
Tudo tem um ar tão sério
e tão
inteligentemente planejado,
que não se pode acreditar que nisso
exista tanto absurdo"
Dos ruídos do fuso da vida
Neste aglomerado de estrofes está um conjunto de textos desconexos a
todo aquele que passar por este plano sem ler a Obra Prima “Arquipélago Gulag –
1918-1956 de Alexander Solijenítsin. Dado nossos princípios, este espaço se viu
no dever de prestar envergonhada homenagem para demonstrar minimamente a nossa
compaixão com os milhões de assassinatos – oficiais e não oficiais - causados
direta e indiretamente naquilo que deveria ser considerado um ato ainda pior
que o próprio Holocausto Alemão. “Quando calculamos os milhões de homens que
pereceram nos campos, esquecemo-nos de multiplica-los por dois ou por três...”
Só não se esqueça de uma coisa: você mesmo seria um cepo desses, se não
tivesse tido a sorte de se tornar uma peça da engrenagem dos “Órgãos” – esse
ser vivo, flexível, completo, que habita no Estado como a tênia no homem. Tudo
lhe pertence agora, tudo é para você, mas só com a condição de ser fiel aos
“Órgãos”! Eles sempre intercederão por você! Sempre o ajudarão a engolir todo
aquele que o ofende! E retirarão qualquer obstáculo do seu caminho! Mas seja
fiel aos “Órgãos”! Faça tudo o que eles lhe ordenem! São eles que pensam por
você e que designam o seu lugar: Hoje você pode ser da seção especial e amanhã
pode ir ocupar o cadeirão do comissário de instrução, para em seguida ser
destacado como etnógrafo para o lago Seliguer, em parte também para tratar dos
nervos. Depois você será transferido de uma cidade onde já se tornou demasiado
famoso para o outro extremo do país, como encarregado para os assuntos da
Igreja. Ou passará a ser o secretário responsável da União de Escritores. Não
há que se admirar de nada: a verdadeira função e categoria das pessoas sabem-na
unicamente os “Órgãos”, aos demais deixam-nos simplesmente representar: ali
onde se vê um mestre emérito das artes ou um herói do trabalho socialista,
sopra-se e ele desaparece. p154
Depois, o exército de Vlássov começou a retroceder para o lado dos
americanos, para a Baviera: toda a sua esperança estava posta agora nos
Aliados, no que pudessem vir a ser-lhes úteis. Assim ganharia no fim de contas
um sentido a sua prolongada suspensão na corda da forca alemã. Mas os
americanos receberam-nos com uma muralha armada e obrigaram-nos a entregar-se
às mãos dos soviéticos, como tinha sido previsto na Conferência de Ialta. E
nesse mesmo mês de maio, na Áustria, Churchill deu também um passo de aliado
leal (que pela nossa habitual modéstia não foi divulgado entre nós), entregando
ao comando soviético um corpo cossaco de noventa mil homens, bem como muitos
carros repletos e mulheres, que não desejavam regressar às margens dos rios
cossacos pátrios. (O grande homem, cujos monumentos com o tempo cobrirão toda a
Inglaterra, decidiu também entrega-los à morte) p255-6
Estava subordinada unicamente ao ministro do Interior, a Stálin e a
Satanás... p279
"É melhor enganar-se na clemência do que na punição". p281
Ao enxugar-se, Valentin disse-me com ar tranquilizador e pacífico:
- Não importa, ainda somos jovens, ainda temos tempo de viver. O
principal agora é não dar passos em
falso. Quando chegarmos ao campo, nem uma
palavra com quem quer se seja, para que não caiam sobre nós novas
condenações. Trabalharemos honradamente,
e, quanto ao resto, calar, calar.
Tanta era a fé que punha nesse programa, tanta era a esperança que tinha
este inocente grão apanhado entre as pedras de moer stalinistas! Sentíamos
vontade de estar de acordo com ele, do cumprir comodamente a sentença e de varrer
depois da cabeça tudo o que tínhamos sofrido.
Mas uma sensação começou a emergir de dentro de mim: se para viver é
preciso não viver – então para quê? p275
É verdade que o coração fica um pouco aliviado quando ouvimos mais
adiante dizer que o centro tático agora processado não era uma organização, e que não tinha: 1) estatutos; 2)
programa; 3) membros que pagavam cotas. Então que faziam eles: Encontravam-se! (Sintamos calafrios nas
costas.) E encontrando-se davam a
conhecer uns aos outros os seus pontos de vista! (Fiquemos paralisados de
horror!) p319
No fim da guerra civil, e como sua consequência natural, abateu-se sobre
a região do
Volga um ano de fome como nunca se
tinha conhecido. Como isso não adorna muito a coroa de glória dos vencedores
desta guerra, falam sobre ela entre dentes e sem ir além de duas linhas. E no
entanto essa fome chegou até ao canibalismo, até aos pais comerem os seus próprios filhos.
Nunca uma fome assim tinha sido conhecida na Rússia, nem sequer no “Tempo dos
Tumultos” (então como testemunham os historiadores, os cereais mantinham-se
debaixo da neve durante vários anos, sem serem colhidos). Um só filme sobre
essa fome poderia projetar uma luz nova sobre tudo o que vimos e tudo o que
sabemos acerca da Revolução e da guerra civil. Mas não há nem filmes, nem
romances, nem estudos estatísticos – é algo que se procura esquecer, que não
embeleza. Além disso, a causa de
qualquer fome, é costume fazê-la recair sobre os kulaks...
(...) Mas algum dia alguém falará daqueles fornecimentos de
intermináveis vagões de víveres enviados durante meses, em aplicação ao tratado
de paz de Brest-Litóvski, pela Rússia, privada de vozes de protesto, mesmo das
regiões que a fome ia devastar, para a Alemanha do Kaiser, que travava no
ocidente os últimos combates.
Da causa ao efeito a cadeia era curta: se os habitantes do Volga comiam
os seus filhos era porque nós não tínhamos outra preocupação que não fosse a de
dissolver a Assembleia Constituinte. p332
Nesta época ainda, num acesso de cólera, quando estavam elaborando o
Código, Vladímir Ilitch, sem deixar perder a sua brilhante ideia, escrevia em
19 de maio:
“Camarada Dzerjinski! Quanto à questão da deportação de escritores e de professores que
ajudam a contra-revolução, é necessário preparar isso o mais cuidadosamente
possível. Sem preparação, cometeremos besteiras... É preciso organizar tudo
isso de tal forma que esses ‘espiões militares’ sejam caçados permanente e
sistematicamente e expulsos para o estrangeiro. Peço-lhe para mostrar isso
secretamente, e sem reproduzi-lo, aos membros do Politburo”. p359
“Assim, com os esforços da atrelagem dos oito, foram alcançados todos os
objetivos de processo:
1.
Todas
as deficiências que existem no país, a fome, o frio, a falta de roupas, a
desorganização e as mais rematadas tontices – tudo isso foi atribuído aos
engenheiros-sabotadores;
2.
O
povo ficou assustado com a iminente intervenção e disposto a novos sacrifícios;
3.
Os
círculos de esquerda do Ocidente ficaram advertidos quanto às maquinações dos
seus governos;
4.
A
solidariedade dos engenheiros foi abalada, toda a intelectualidade, assustada e
dividida. E para que não restassem dúvidas de que era este o objetivo do
processo, uma vez mais ele foi proclamado com clareza por Ramzin:
‘Eu queria que, como resultado do atual processo do Partido Industrial,
sobre o sombrio e vergonhoso passado de toda a intelectualidade... fosse
traçada uma cruz para sempre’
No mesmo sentido se manifesta Larítchev: ‘Essa casta deve ser destruída...Não
há nem pode haver lealdade nos meios da engenharia!’ E Ótchkin: ‘A
intelectualidade é algo de pantanoso, ela não tem, como disse o acusador,
espinha dorsal, carece absolutamente de vertebralidade... É incomensuravelmente
mais elevado do olfato do proletariado’.
Por que, pois, fuzilar gente de tão boa vontade?...
Foi isso o que se escreveu durante décadas da história sobre a nossa
intelliguêntsia – desde o anátema de 1920 (o leitor recorda-se: ‘não é o
cérebro da nação, mas a merda da nação’, ‘a aliada dos generais negros’, ‘um
agente a soldo do imperialismo’) até ao anátema de 1930.
É acaso de maravilhar que a palavra ‘intelliguêntsia’ se tenha firmado
entre nós como um insulto?
Eis como são montados os processos judiciais públicos. O pensamento
inquiridor stalinista alcançou, finalmente, o seu ideal. (Ora, ora... ele causa
inveja aos desastrados Hitler e Goebbels, que se cobriram de vergonha com o
incêndio do Reichstag...)” p384-5
E não houve
aplausos*
*Uma pequena nota
consagrada à menina Zóia Vlássova, de oito anos.
Ela amava o pai extremosamente. Não pôde voltar a estudar na escola
(zombavam dela dizendo: “O seu pai é um sabotador!” Ela brigava com as outras:
“O meu pai é bom!”). Depois do julgamento, viveu só um ano (até então jamais
estivera doente). Nesse ano, nem uma só vez riu, andando sempre cabisbaixa, e
as velhas auguravam: “Ela olha para a terra, depressa morrerá”. E morreu de
meningite, gritando antes de morrer, constantemente: “Onde está o meu pai?
Tragam o meu pai!”
Quando calculamos os milhões de homens que pereceram nos campos,
esquecemo-nos de multiplica-los por dois ou por três... p414
A julgar pelos documentos oficiais, a pena de morte foi restabelecida,
em todos os seus direitos, a partir de junho de 1918 – não propriamente
“restabelecida”, mas instituída para inaugurar uma nova era das execuções. Se considerarmos que Látsis não
diminuiu os números, carecendo apenas de informações completas, e que os
tribunais revolucionários fizeram pelo menos um trabalho judicial equivalente
ao extrajudicial da Tcheká, chegaremos à conclusão de que em vinte províncias
da Rússia central, num período de dezesseis meses (de junho de 1919 a outubro
de 1919), foram fuziladas mais de dezesseis mil pessoas, ou seja, mais de mil por mês.p418
*Já que estamos em
comparações, vejamos mais uma:
nos oitenta anos
do auge da Inquisição (1420-1498)
foram em toda a
Espanha condenadas à fogueira dez mil pessoas,
isto é, cerca de
dez pessoas por mês.
Mais horrorosa nos parece ainda a moda de ambas as partes beligerantes,
e mais tarde dos vencedores, do afundamento de barcaças com centenas de
pessoas, sem serem contadas nem recenseadas, e até nem inscritas em listas.
(Tal foi o caso da morte de oficiais de Marinha no golfo, da Finlândia, no mar
Branco, no mar Cáspio e no mar Negro, e ainda dos reféns de 1920, no lago Baikal.)p419
E que criminosos eram esses? De onde tinham saído tantos conspiradores e
agitadores? Estavam ali, por exemplo, seis kolkhozianos
dos arredores de Tsarkóie-Celo, os quais eram acusados do seguinte: depois das
ceifas do kolkhoz (feitas com as suas
próprias mãos!), eles passaram de novo a crivo os campos e recolheram as
espigas que tinha ficado entre os torrões para das às suas vacas. Estes seis mujiques não foram perdoados pelo Comitê Executivo Central, e a sentença
foi executada!p420
Se Stálin nunca tivesse mandado matar ninguém mais, só por esses seis
mujiques de Tsarkóie-Celo eu já o consideraria digno de ser esquartejado! P421
Até que grau serão inverossímeis estas cifras? Considerando que os
fuzilamentos foram realizados não durante dois anos, mas sim em um ano e meio,
obtemos (para o artigo 58) a média por mês de vinte e oito mil fuzilados. Isso
em toda a União. Mas quantos locais de fuzilamento havia? Será muito modesto
considerar que eram apenas uma centena e meia. (Havia mais, naturalmente. Só em
Pskov tinham sido adaptadas muitas igrejas e antigas celas de eremitas para
locais de tortura e fuzilamento da NKVD. Ainda em 1953 nessas igrejas não eram
permitida a entrada de turistas: “depósitos de arquivos”; belos “arquivos”, em
que não tinham limpado as teias de aranha em dez anos! Antes dos trabalhos de
restauração, foram daí levados montes de ossos em caminhões.) Pode calcular-se
que num lugar, e num só dias, levavam ao fuzilamento seis pessoas. Acaso isso é
algo fantástico? Isto está até subestimado! (Segundo outras fontes, até 1º de
janeiro de 1939, tinham-se fuzilado um milhão e setecentas mil pessoas.)p422
O nosso destino de ir parar à cela dos condenados não se decide por
aquilo que fizemos ou não fizemos – decide-se pelas voltas da grande roda, de
poderosas circunstâncias exteriores. Por exemplo, Leningrado encontra-se
bloqueada. Que deve pensar o seu dirigente supremo, Camarada Jdánov, se nos
processos do GB (segurança do Estado) de Leningrado, nesses meses duros, não
está prevista nenhuma pena de morte? Que os “Órgãos” não atuam, não é assim?
Deve haver, para serem descobertas, importantes conspirações clandestinas dirigidas
pelos alemães do exterior, não é verdade? Por que é que sob Stálin, em 1919,
essas conspirações foram descobertas e sob Jdánov, em 1942, elas não vêm à luz?
Dito e feito: descobrem-se várias conspirações ramificadas! Enquanto você dorme
no seu quarto gelado de Leningrado, uma garra negra desce sobre você. E aqui
nada depende de você mesmo. Acontece que certo general Ignátovski tem uma
janela que dá para o rio Nievá e tirou um lenço branco para se assoar: é um
sinal! Além disso, Ignátovski, que é engenheiro, gosta de falar com os
marinheiros sobre questões técnicas. Há que cortar o mal pela raiz! Ignátovski
é preso. Chegou o momento de ajustas contas! Ele é obrigado a dar o nome dos
quarenta membros da sua organização. Dá-os. Se você é lanterninha do Teatro
Aleksandra, as possibilidades de ser citado não são grandes, mas se é professor
de um instituto tecnológico, então está na lista (outra vez esta maldita intelliguêntsia!). Nada depende de você.
E por figurar nessa lista todos são fuzilados. p424
Em casa de um conhecido meu, antigo preso político, há o seguinte
costume: em 5 de março, dia da morte do Assassino Principal, colocam-se sobre a
mesa as fotografias dos fuzilados e mortos no campo de concentração: algumas
dezenas, as que se conseguiu reunir. E durante todo o dia reina no apartamento
um ambiente solene, meio de igreja, meio de museu. Executa-se música fúnebre,
vêm os amigos, olham as fotografias, guardam silencio, escuta, fala a meia voz,
e saem sem despedir-se.
Se se fizesse assim em toda a parte... Guardaríamos nem que fosse uma
pequena cicatriz dessas mortes.
A fim de que, de todas as maneiras, não
tivessem morrido em vão! p425
Eu também tenho umas quantas fotografias ocasionais. Olhem ao menos para
estas.
Viktor Petróvitch Pokróvski – fuzilado em Moscou, em 1918.
Aleksandr Chtrobínder, estudante – fuzilado em Petrogrado, em 1918.
Vassíli Ivánovitch Anítchkov fuzilado na Lubianka, em 1927.
Aleksandr Andrêievitch Sviétchin – professor do Estado Maior – fuzilado
em 1935.
Mikhail Aleksándrovitch Retormátski, agrônomo, fuzilado em Oriol, em
1938.
Elizavieta Evguênievna Anítchkova – fuzilada num campo de trabalho no
Ienissei, em 1942. p426
É através dos indultados e dos artistas que temos um quadro aproximado
da cela da morte. Sabemos, por exemplo, que durante a noite eles não dormem,
mas esperam. Só pela manhã se
tranquilizam. p427
Narókov (martchenko) [sic], no romance Falsas Grandezas (Edições Tchékhov), onde é dominado pela
preocupação de escrever como Dostoiévski, de tocar e de comover mais ainda do
que Dostoiévski, descreve no entanto muito bem a cela do condenado e a própria
cena do fuzilamento, na minha opinião. Não é possível comprová-lo, mas em certa
medida acredita-se.
Os pressentimentos de artistas mais antigos, por exemplo Leonid
Andrêiev, transportam-nos inevitavelmente aos tempos de Krilov. Mas que
escritor fantástico poderia imaginar, por exemplo, as celas da morte de 1937?
Ele não deixaria de desfiar a meada psicológica: a maneira de esperar, de escutar...
Quem poderia no entanto prever e descrever-nos estas sensações inesperadas dos
condenados à morte?
1.
Eles
sofrem de frio. Têm que dormir num
chão de cimento, debaixo da janela, a uma temperatura de três graus negativos
(Strakhóvich), e pode ser que morram enregelados antes do fuzilamento.
2.
Eles
sofrem de falta de espaço e de calor
asfixiante. Numa cela só para um, põem sete (é raro haver menos), dez, quinze
ou mesmo vinte e oito condenados à morte (Strakhóvitch, Leningrado, 1942). E
assim, esmagados, são mantidos semanas e
meses! De forma que já não é um pesadelo falar dos sete enforcados! (Alusão
à novela de Leonid Andrêiev, A história dos sete enforcados). Os homens já não
pensam na execução, não temem o fuzilamento, mas pensam só em como estender as
pernas, em como dar uma volta, em como absorver o ar.
Em 1937, quando nas várias prisões de Ivánovo
(prisões interiores nº1, 2 e KPZ) se encontravam presas ao mesmo tempo quarenta
mil pessoas, embora estivessem planejadas apenas para três ou quatro mil, só na
prisão nº2 tinham sido amontoados presos com processo em instrução, condenados
a campos de trabalhos, condenados à morte, condenados à morte indultados e
ainda ladrões. E todos eles estiveram durante
vários dias numa grande cela, de pé
apoiados uns contra os outros, com tal estreiteza que não se poderia
levantar nem baixar os braços, e aqueles que eram apertados conta as tarimbas
podiam fraturar os joelhos. Isso passava-se no inverno, mas, para não se
asfixiarem, os reclusos quebravam as vidraças das janelas. (Foi nesta cela que
aguardou a morte, já depois de condenado, o velho bolchevique Alalíkin, membro
do Partido Operário Social-Democrata Russo desde 1898, e que abandonou o
Partido Bolchevique em 1917, depois das Teses de Abril)*
*Teses
defendidas por Lênin em 17 de abril de 1917: recusa de combater na guerra,
ruptura com o governo provisório, passagem do poder aos sovietes.
3.
Os
condenados à mote sofrem de fome. Depois da sentença a espera é tão longa que a
sua principal sensação passa a ser não a do medo do fuzilamento, mas a da
tortura da fome: onde encontrar o que comer? Aleksandr Babitch, no ano de 1941,
na cadeia de Krasnoiarsk, passou na sua cela de morte setenta e cinco dias! Já
se tinha resignado completamente e aguardava o fuzilamento como o único e
possível fim da sua vida desfeita. Mas acabara por inchar devido à fome – e foi
então que lhe comutaram a pena para dez anos de prisão, tendo iniciado em tal
estado a sua vida pelos campos de trabalho. Mas qual é o recorde de permanência
na cela da morte? Quem o conhece? Vsievólod Petróvitch Golítsin parece ser o
campeão (!). Passou lá cento e quarenta dias (em 1938). Mas acaso será este o
recorde?... Uma glória da nossa ciência, o acadêmico N. I. Vavílov, esteve à
espera do fuzilamento vários meses, se
não um ano inteiro; depois, na sua qualidade de condenado à morte, foi
evacuado para a prisão de Sarátov, onde permaneceu numa cela subterrânea, sem
janelas; e quando no verão de 1942 foi indultado e o transferiram para a cela
comum, não podia andar: à hora do passeio deviam leva-lo nos braços.
4.
Os
condenado à morte sofrem por falta de assistência médica. Okhrimenko, durante a
longa permanência na cela da morte (em 1938), adoeceu gravemente. Não o levaram
ao hospital, e a médica não apareceu durante longo tempo. Quando ela finalmente
chegou, não entrou na cela, mas através da porta com rede, sem o examinar nem
nada lhe perguntar estendeu-lhe uns pós. Strakhóvitch sofria de hidropisia nas
pernas, o que ele explicou ao guarda, e mandaram-lhe... uma dentista.
Quando o médico intervém, deverá ele curar o
condenado à morte, ou seja, prolongar-lhe o tempo de espera da morte? Ou o
humanismo do médico consistirá em insistir no fuzilamento quanto antes? Ainda
outra cena de que Strakhóvitch foi testemunha: o médico entra e, ao falar com o
guarda de plantão, aponta com o dedo para um condenado à morte: “Mas já é um
defunto!... um defunto!” (Assim ele queria chamar a atenção para as distrofias
dos condenados, insistindo em que não se pode deixar morrer assim lentamente as
pessoas, sendo já mais que tempo de fuzilá-los) p427/428
Os calabouços eram o flagelo das prisões especiais. Podia-se ser enviado
para lá por tossir (“cubra a cabeça
com a manta, e então já pode tossir!”); por fazer barulho com o calçado (na
prisão de Kazan tinham dado às mulheres botas masculinas número 44). Por outro
lado, Guinzburg deduz justamente que a passagem pelo calabouço era determinada
não pelos atos realizados mas por um gráfico:
Todos tinham, por turnos, de passar por ali e de saber o que era isso. E nas
disposições havia ainda este ponto de grande amplitude: “Em caso de indisciplina
no calabouço, o chefe da prisão tem o direito de prolongar o período de
permanência nele de até vinte dias”.
E que “indisciplina” era essa?... Eis o que ocorreu com Kozíriev (a descrição
dos calabouços e de muitos aspectos do regime apresentam tantas coincidências
que se nota o selo de um regime único). Por andar pela cela castigaram-no com
cinco dias de calabouço. No outono, o calabouço não era aquecido. Fazia muito
frio. Deixavam-nos em roupa íntima e descalços. O soalho era de terra batida, com
poeira (às vezes era de barro ou lama, e na prisão de Kazan coberto de água).
Kozíriev tinha um mocho (Ghinzburg não tinha). Pensou imediatamente que ia
morrer, que ia congelar. Mas gradualmente emergiu nele um misterioso calor
interior, e isso o salvou. Aprendeu a dormir sentado no mocho; três vezes por
dia davam-lhe uma caneca de água quente, de que parecia ficar embriagado. Na
ração de trezentos gramas de pão um dos guardas introduziu lhe um torrão de
açúcar, que não era permitido. Era através da entrega do racionamento e de uma
ficha de luz que penetrava pelo labirinto da entrada que Kozíriev contava o
tempo. Ao fim do quinto dia não o tiraram dali. Com o ouvido atento, ele
escutou um murmúrio no corredor, falando de seis
dias, ou de um sexto dia. Nisso consistia a provocação: esperavam que ele
dissesse que os cinco dias tinha passado, que já era tempo de o tirarem dali e
prolongar por indisciplina a estada no calabouço. Mas ele, submissamente
calado, esperou um dia mais, e então deliberaram, como se nada tivesse
sucedido. (talvez o chefe da prisão os experimentasse, um por um, aplicando o
calabouço a todos aqueles que ainda não se tinham submetido.) Depois do
calabouço a cela comum parecia um palácio, embora Kozíriev tivesse ficado surdo
por meio ano e começasse a surgir-lhe abscessos na garganta. p460/461
E isso sucede porque se deixou passar o momento, senhores, camaradas e
irmão! Para reagir, era preciso tê-lo feito quando Strujinski se imolou com
fogo na cela de Viatka, e ainda antes disso, quando os declararam “do contra”.
Ora, você permitiu que lhe tirassem o sobretudo, que o seu casaco fosse
apalpado e que fosse arrancada com um pedaço de tecido a nota de vinte rublos
que lá tinha sido cosida, que a sua bolsa fosse despejada, e revistada, que tudo
o que a sua esposa sentimental juntou para você depois da sentença, para a
longa viagem, ficasse perdido, sendo-lhe devolvido apenas a bolsa com a escova
de dentes...
É verdade que nem todos se submeteram assim nos anos 30 e 40, mas apenas
noventa e nove por cento. Como pôde isto suceder? Homens! Oficiais! Soldados!
Combatentes da frente! p479
Os gatunos, por sua vez, não passaram por tais interrogatórios. Foram
interrogados quando muito duas vezes, tiveram um julgamento suave, uma sentença
leve e até mesmo essa sentença não a cumprirão, serão liberados antes: ou os
anistiam ou fogem. Ninguém privou os gatunos das encomendas legais, e durante
instruções recebem abundantes pacotes dos camaradas de roubo que ficaram em
liberdade. Não emagreceram, não se debilitaram nem um só dia e pelo cainho
alimentaram-se à custa dos fraiers.
(Fraier: aquele que não é ladrão, isto é, que não é um “Homem” – com letra
maiúscula. Ou mais simplesmente: o resto da humanidade, quem não rouba. p480/1
Assim pomo-nos em marcha. Dormimos com os corpos entrelaçados, sob o
trepidar das rodas, não sabendo que bosques ou estepes se verão amanhã através
da janela. Da janela que há no corredor. Do beliche do meio, olhando através
das grades do corredor, dos vidros e ainda de outras grades, podem
distinguir-se vagamente as estações do caminho e um pedacinho do espaço que
corre junto ao trem em marcha. Se as vidraças das janelas não estão recobertas
pelo gelo, às vezes pode-se ler o nome da estação – uma qualquer, Avsiúnino ou
Undol. Onde ficam essas estações?...Ninguém no compartimento sabe. Às vezes,
pelo sol, pode-se descobrir se nos levam para o norte ou para o oriente. p488
Por que é que se deve suportar então isso da prisão? Você perdeu tempo,
não comeu logo o seu toucinho, não repartiu com os amigos o açúcar e o tabaco,
e agora os gatunos remexerão na sua bolsa, para corrigir o seu erro moral.
Dando a você, em troca das suas
elegantes botas, uns velhíssimos sapatos, e uma peça de roupa toda manchada em
troca da sua camiseta de lã. Eles não guardam essas coisas para si por longo
tempo: as botas, eles vão ganha-las e perde-las trinta e seis vezes jogando
cartas; e a sua camiseta da lã, vão trocá-la no dia seguinte por um litro de
vodca e um pedaço de linguiça. Ao cabo de um dia, eles já não terão nada, como
você. É o segundo princípio da termodinâmica: os níveis devem igualar-se, igualar-se...
Não tenham nada! Não possuam nada! – foi o que nos ensinaram Buda e
Cristo, os estóicos e os cínicos. Por que é que nós, avarentos, não escutamos
esta simples prática? Por que é que não compreendemos que com os bens perdemos
a nossa alma?
Deixe, eventualmente, que o arenque se aqueça no seu bolso até o campo
de trânsito, para não ter que pedir água. Mas se lhe deram açúcar e pão de uma
só vez, para dois dias, coma tudo de uma assentada. Então ninguém vai roubá-lo.
E você não terá preocupações. Já está livre como um pássaro do céu!
Tenha só o que puder levar sempre com você: conhecimento de línguas,
países e gentes. Que a sua memória seja a sua mochila. Use a memória! Retenha tudo
nela! Somente essas sementes amargas poderão algum dia frutificar.
Olhe, há pessoas à sua volta.
Talvez você venha a se recordar de uma delas durante toda a vida, e venha a
morder os dedos por não a ter ouvido. Fale menos, escute mais. De uma a
outra ilha do arquipélago estende-se os delicados fios das vidas humanas. Eles
entrelaçam-se, cruzam-se por uma noite, na penumbra de um destes trepidantes
vagões, e depois de novo se separam eternamente – mas incline o ouvido para o
seu murmúrio baixinho, e também para o monocórdio trepidar do vagão. Tudo isso
é ruído do fuso da vida que gira. p490/91
O coronel reformado Lúnin, alto funcionário da Osoaviakhim, relatava
numa cela da prisão de Butirki, em 1946, como em oito de março, num
“tintureiro” moscovita, na sua presença e no espaço de tempo decorrido no
percurso entre o tribunal da cidade e a prisão de Taganka, os gatunos violaram
uma moça, um após outro (perante a passividade silenciosa dos outros ocupantes
da viatura). Essa moça, na manhã desse mesmo dia, vestindo a sua melhor roupa,
tinha ido livremente ao tribunal comum (devia ser julgada por ter abandonado o
trabalho sem licença, acusação infame do seu chefe como vingança por ela se
recusar a viver com ele). Meia hora antes a moça tinha sido condenada a cinco
anos, segundo o ukaze. Puseram-na
nesse “tintureiro” e eis que, em pleno dia, em algum ponto do trajeto de
Sadovoie Koltso (“Bebam champanha soviético!”), a converteram numa prostituta
dos campos de concentração. Quem foi o verdadeiro responsável? Os gatunos? Os
carcereiros? Ou o chefe dela?
A delicadeza da gatunagem! Roubaram ali mesmo a pobre moça: tiraram-lhe
os seus melhores sapatos, com os quais ela queria impressionar o tribunal, e a
blusa, que foi entregue à escolta, tendo essa mandado para o “tintureiro” para
ir comprar vodca, que foi distribuída. E assim os gatunos beberam à custa da
moça. p503
Os portos do arquipélago – (...) Raro é o zek que não esteve em três ou cindo campos de trânsito. Muitos
podem guardar memória de uma dezena, mas os
filhos do gulag contam-nos sem dificuldade até meia centena. E só se
confunde em sua memória aquilo em que todos eles se parecem: a escolta
analfabeta; a inútil chamada segundo a ordem, ou melhor, a desordem, das
listas; a longa espera sob o sol escaldante ou sob a gélida chuva de outono; a
revista prolongada de corpo despido;
o corte de cabelo com um aparelho sujo; os banheiros malcheirosos e
escorregadios; as fedorentas latrinas; o cheiro de mofo dos corredores
estreitos e sem ar; as celas quase sempre escuras e úmidas; o calor da carne
humana sempre a nosso lado, no chão ou nos beliches; as mesas-de-cabeceira
feitas com tábuas mal pregadas; o pão molhado, quase líquido; a sopa que parece
cozida com forragem.
Quem tem boa memória para pormenores e é capaz de matizar as
recordações, diferenciando-as uma das outras, não necessita agora de viajar ao
longo do país: toda a geografia se resume para ele nas viagens pelos campos de
trânsito. Novos sibirsk? Conheço bem. Estive lá: umas barracas muito sólidas, feitas
de grossos toros. Irkutsk? Foi aí que taparam várias vezes as janelas com
tijolos. Vê-se ainda como elas eram no tempo do czar, distinguindo-se cada tipo
de remendo e os buracos que deixaram para a passagem de ar. Vologda? Sim, é um
edifício antigo, com torres. As latrinas ficam uma por cima da outra, os forros
de madeira estão podres, pingando dos superiores para os inferiores. Usman?
Pois sim! Um cárcere fedorento e cheio de piolhos, uma construção antiga com
abóbadas. E junta-se aí tanta gente que quando as pessoas começam a sair para
reintegrarem as levas não se acredita que todos ali coubessem. A fila ocupa
meia cidade. P506/7
senhores,
camaradas e irmão!
Para
reagir, era preciso tê-lo feito
quando
Strujinski se imolou com fogo na cela de Viatka,
e
ainda antes disso,
quando
os declararam “do contra”.
Não ofenda os conhecedores, não lhes diga que esteve em cidades sem
prisões de trânsito. Eles demonstram-lhe com rigor que essas cidades não
existem, e terão razão. Salsk? Os que estão de passagem são fechados nas celas
de prisão preventiva, junto àqueles que estão submetidos a uma investigação. E
em cada capital de distrito há uma prisão de trânsito? Sol-Ilietsk também temos uma. E em Ribinsk?
Que outro nome dar a prisão número 2, no velho mosteiro? Oh! Um mosteiro
tranquilo, com os pátios empedrados, desertos, com as antigas lajes cobertas de
musgo, e com bacias de madeira limpinhas no banheiro. Em Tchita? É a prisão
número 1. Em Nauchiki? Lá não há uma prisão, mas sim um campo de trânsito, o
que é a mesma coisa. Em Torjok? Na montanha há também uma, noutro mosteiro.
É preciso compreender, amigo, que não pode haver uma cidade sem prisão
de trânsito, na verdade, os tribunais trabalham em toda a parte. E como conduzir
os prisioneiros ao campo? Pelo ar?
Naturalmente, nenhuma prisão de trânsito é igual a outra. Mas qual é
melhor, e qual pior – é impossível dizê-lo. Quando se juntam três ou quatro zeks, cada um obrigatoriamente elogia a “sua”.
Vejamos: Ivánovo não é uma prisão de trânsito assim tão célebre. Mas
pergunte-se a quem lá esteve no inverno de 1937-38. A prisão não era aquecida e
lá não se gelava, ao contrário: nos beliches superiores os presos deitavam-se
despidos, Tinham-se quebrado as vidraças das janelas para não se asfixiar. Na
cela 21, em vez das vinte pessoas previstas havia trezentas e vinte e três? Por
sob as tarimbas inferiores havia água e puseram-se tábuas por cima, deitando-se
os presos nas tábuas. Das vidraças partidas soprava um ar gélido. Numa palavra,
debaixo das tarimbas era noite polar: não havia luz e toda a claridade era
ofuscada pelos que jaziam nos beliches e pelos que se mantinham de pé entre
esses beliches, Não havia passagem para ir ao balde-latrina, sendo necessário
fazer uma escalada pela borda dos beliches. A comida não era distribuída
segundo o número de presos, individualmente, mas sim por dezenas; se um dos que
faziam parte dessa dezena morria, os outros colocavam-no debaixo das tarimbas e
lá o mantinham até que cheirasse mal. Entrementes recebiam a sua ração de
comida. E tudo isso seria ainda possível de suportar, mas os guardas
excitavam-se como se tivessem sido regados com aguarrás, transferindo os presos
sem cessar. Mal uma pessoa tinha acabado de instalar-se e já lhes gritavam: “De
pé! Mudar para outra cela!” e novamente era preciso conseguir lugar. Por que
essa superlotação? Durante três meses não tinham levado os prisioneiros ao
banho. Os piolhos proliferavam e devido aos piolhos apareceram chagas nas
pernas, tendo-se declarado o tifo. Por causa do tifo foi imposta uma quarentena
e durante meses não houve transferências.
- Foi assim, rapazes! E não
porque se tratasse de Ivánovo, mas sim por ser naquele ano. Em 1937-38 não eram
só os zeks, mas também as pedras das
prisões de trânsito que gemiam. A prisão de Irkutsk não era sequer uma
prisão de trânsito especial, mas, em 1938, nem os médicos se atreviam a dar uma
olhadela às celas. Limitavam-se a passar pelo corredor, e o guarda gritava à
porta: “Aqueles que estão sem sentidos
que saiam!”
- Em 1937, rapazes, toda essa gente se arrastava através da Sibéria em
direção de Kolimá e tropeçava no mar de Okhotsk e em Vladivostok. Os navios só
conseguiam transportar até Kolimá trinta mil presos por mês – e de Moscou
continuavam a enviá-los, sem levar isso em consideração. Bom, juntaram-se cem
mil, compreendem?
-E quem os contou?
-Aqueles que acharam necessário conta-los.
- Se se trata da prisão de trânsito de Vladivostok, lá, em fevereiro de
1937, havia nada menos de quarenta mil.
- Sim, durante meses eles atolaram-se ali. Os percevejos corriam pelos
beliches como uma praga de gafanhotos! Quanto à água, davam-nos meio copo por
dia: ela faltava e não havia quem a fosse buscar! Havia uma zona inteira de
coreanos: todos pereceram de disenteria, todos! Da nossa zona cada manhã retiravam
uns cem homens. Para construir uma morgue, engatavam zeks aos carros e assim transportavam pedras. Hoje você carrega,
amanhã será carregado para lá, e no outono declarou-se também o tifo. Fizemos
como em outros lugares: não entregávamos os mortos enquanto não cheiravam mal.
Recebíamos a ração deles. Não havia medicamentos. Penetrávamos na zona:
deem-nos remédios! E das torres de atalaia atiraram uma descarga. Mais tarde
reuniram todos os que tinham sido atingidos pelo tifo numa barraca isolada. Não
conseguiam levá-los para lá a tempo, mas uma vez lá eram poucos os que saíam.
Em cada barraca os beliches eram de dois andares, e quando no segundo andar os
doentes, atacados pela febre, não podiam descer para fazer as suas
necessidades, faziam-nas sobre os de baixo. Havia ali mil e quinhentos doentes
e os enfermeiros eram verdadeiros ladrões. Aos mortos eles arrancavam os dentes
de ouro. E chegaram a fazer o mesmo aos vivos. p507/8/9
Gostaria também de intervir e de falar sobre a Krásnaia Présnia, em
agosto de 1945, no Verão da Vitória, mas sinto certa vergonha...
...Numa cela algo
maior do que um quarto médio de habitação havia cem homens, prensados, não
havendo espaço onde pôr os pés. E as duas pequenas janelas estavam tapadas com
“mordaças” recobertas de chapas de metal, isto no lado sul, e com isso não só
impediam o movimento do ar, como também aqueciam com o sol e espalhavam o calor
na cela. p510
A fantasia dos literatos é pobre, perante a vida dos nativos do
arquipélago. Quando querem escrever sobre as prisões, a coisa mais degradante e
deprimente que criticam é sempre o balde
que serve de latrina nas celas. O balde-latrina. Ele tornou-se na literatura
o símbolo da prisão, o símbolo da humilhação, do fedor. Que leviandade! Acaso o
balde-latrina constitui um mal para o preso? Pelo contrário, é a mais
caritativa das invenções dos carcereiros. Todo o horror começa no preciso
momento em que esse balde da cela deixa de existir.
No ano de 1937 em algumas cadeias da Sibéria não havia baldes-latrinas.
Eles eram em número insuficiente! Não tinham fabricado com antecipação baldes
que chegassem. A indústria siberiana não satisfazia a ampla procura. E
aconteceu que nos armazéns não havia baldes para as novas celas. Nas celas
antigas os baldes que existiam eram tão pequenos e primitivos que agora,
sensatamente, foi preciso retirá-los. Dadas as novas vagas de presos, eles já
não prestavam para nada. Assim, se a prisão de Minussinsk tinha sido construída
há muito para quinhentas pessoas (Vladímir Ilitch não chegou a conhecê-la, pois
achou o caminho do exílio em liberdade), agora punham lá dez mil. O que
significa que cada balde-latrina deveria ter aumentado vinte vezes de tamanho!
Mas não tinha...
Nossas canetas russas escrevem com traços grossos. Temos sofrido
enormemente e quase nada disso foi escrito, Mas para os autores ocidentais, com
a sua preocupação de examinar à lupa as células do organismo, agitando a ampola
farmacêutica sob a luz dos projetores, isto é uma verdadeira epopeia, que
permitirá acrescentar dez tomos à obra Em
busca do Tempo perdido, descrevendo o pânico do espírito humano quando numa
cela há uma superlotação, vinte vezes superior à prevista, e não há baldes, só
sendo permitido ir à latrina uma vez por dia! Naturalmente muitas formas de
solução são deles desconhecidas. Eles não encontrariam saída urinando num capuz
de lona impermeável. E não compreenderiam sequer o conselho do vizinho para
urinar dentro da bota! E no entanto trata-se de um conselho cheio de sabedoria
e de grande experiências, que não implica de modo algum de que se estrague a
bota, nem se rebaixe esta ao nível de um balde. Isso exige simplesmente que se
descalce a bota, que se ponha a parte de cima para baixo, que se volte do
avesso o cano e que se dobre este para fora. Assim se forma a desejada
cavidade, formando um canal arredondado! Mas, em comparação, com quantas
sinuosidades psicológicas enriqueceriam os autores ocidentais a sua literatura
(sem risco algum de repetir as banalidades dos célebres mestres) se conhecessem
apenas o regulamente da prisão de Minussinsk: para receber a comida
entregava-se uma tigela para quatro, tendo-se direito a uma caneca de água
potável por dia e por pessoa (havia canecas). Mas eis que um dos quatro acabava
de utilizar a tigela comum para aliviar a pressão da bexiga e antes da comida
se negavam a entregar a sua reserva de água para lavar essa tigela. Que conflito!
Que choque entre quatro caracteres! Que nuanças! p513/4
Desde os primeiros passos na prisão de trânsito se poderá observar que
não são os vigilantes nem os graduados que têm poder sobre os presos, pois se
atêm a uma certa lei escrita. Aqui se está sob o domínio dos “dissimulados*” da
prisão de trânsito.
*Tipo de presos
comuns, com certos privilégios, subordinados aos chefes de equipe (outros
presos), e que se infiltram entre os prisioneiros políticos para lhes fazerem
trapaças trocando, vendendo objetos pessoais, etc. p515
“Não são propriamente gatunos!”, explicam-nos os entendidos que há entre
nós. “São cadelas que vieram prestar serviço. São os inimigos dos ladrões
honrados. Estes estão presos nas celas”. Mas nos nossos cérebros de patinhos
isso penetra com dificuldade. Todos têm os mesmos modos, as mesmas tatuagens.
p.516
Talvez uns sejam inimigos dos outros, mas de nós é que eles não são
amigos... p.516
Inexperientes, sem olhar em torno, sem calcular, arrastamo-nos pelo solo
asfaltado, debaixo das tarimbas, pois ali estaremos mais cômodos. As tarimbas
são baixas e os homens robustos, para entrar lá, têm de deitar-se no chão,
rastejando. Conseguiram-no. Aqui estaremos estendidos calmamente, e calmamente
conversaremos. Mas não! Na baixa penumbra, com um sussurro silêncios, de gatas,
como grandes ratazanas, arrastam-se de todos os lados, com cautela, os menores: são ainda garotos, alguns
mesmo de doze anos, mas o Código admite-os também, eles já passaram pelo tribunal por roubo e continuam agora aqui a
aprendizagem junto com os ladrões. Lançaram-nos contra nós! Eles rastejam, de
todos os lados, em direção nós, e uma dezena de mãos vão-nos tirando e
arrancando o que temos debaixo dos nossos corpos. E tudo isso em silêncio,
apenas com guinchos sinistros. Estamos metidos numa armadilha: não podemos nem
levantar-nos, nem mexer-nos. Um minuto depois de nos terem arrancado a bolsa
com toucinho, açúcar e pão, tinham-se já sumido, e, nós, sempre deitados.
Abandonamos, sem lutar, os alimentos, e agora podíamos ao menos permanecer na
cama, mas isso já é impossível. Mexendo comicamente as pernas, pomo-nos de
gatas, com o traseiro contra as tarimbas. p518/19
E o vaivém continua! Trazem-nos, levam-nos, um por um ou em grupos,
enviam-nos sabe-se lá para onde, em levas. Tudo tem um ar tão sério e tão
inteligentemente planejado, que não se pode acreditar que nisso exista tanto
absurdo. p525
Se a natureza humana evolui, não é com muito mais rapidez do que o
aspecto geológico da Terra. E esse sentimento de curiosidade, de deleite e
prazer, que há vinte e cinco séculos dominava os escravagistas no mercado de
escravos, dominava também naturalmente os funcionários do Gulag, na prisão de
Usman, em 1947, quando duas dezenas de homens com o uniforme do Ministério da
Segurança do Estado se sentaram por trás de algumas mesas, cobertas com lençóis
(isto para das ao ato maior dignidade, de outra forma seria incômodo), e todas
as mulheres presas tiveram que se despir no boxe vizinho, e passar nuas e
descalças diante deles, dar a volta, parar e responder às perguntas. “Baixe os
braços!” – indicavam eles àquelas que adotavam, por pudor, poses de estátuas
antigas (pois os oficiais deviam escolher conscienciosamente as suas
concubinas, para si e para os que os cercavam). p532/33
Kargopollag
Um dia, puseram na nossa cela de Présnia um detido de designação especial, e ele dormiu ao meu
lado durante duas noites. Designação especial significava que na Administração
Central tinham escrito um borderô que o acompanhava de campo em campo, e onde
se dizia que ele era técnico de construção e só nessa condição poderia ser utilizada
em cada novo lugar. O prisioneiro de designação especial viaja num stolípin normal, instala-se em celas
comuns da prisão de trânsito, mas a sua alma não estremece: ele está defendido
pelo borderô e não o enviam para cortar árvores num bosque.
Uma expressão cruel e decidida, tal era a marca mais visível no rosto deste
recluso que já tinha cumprido grande parte da pena a que fora condenado. (Eu
não sabia ainda que essa expressão era o estigma nacional dos ilhéus do Gulag.
As pessoas com expressão suave e condescendente morrem rapidamente nas ilhas.)
Ele observava as nossas primeiras discussões com um sorriso igual ao que se tem
para os cachorrinhos de duas semanas.
O que é que nos esperava no campo? Compadecendo-se de nós, ele ensinava:
- Desde os primeiros passos no campo
cada um procurará enganá-los e roubá-los. Não confiem em ninguém, exceto em
vocês mesmos! Olhem em volta e vejam se alguém se dispõe a mordê-los. Há oito
anos atrás, quando cheguei ao Kargopollag, era tão ingênuo como vocês. Descarregaram-nos
do trem e a escolta preparava-se para conduzir-nos: eram dez quilômetros até ao
campo, por um caminho coberto de neve profunda e movediça. Cegaram três trenós.
Um homem corpulento, que não foi impedido pela escolta, comunicou: “Irmãos,
ponham aí as coisas, nós as levaremos!” E nós nos lembramos: tínhamos lido na
literatura que as coisas dos presos eram levadas em carroças. Não era assim tão
inumano, o campo. Eles eram solícitos. Lá colocamos as coisas. Os trenós
partiram. Foi tudo. Nunca mais as vimos. Nem sequer as embalagens vazias.
- Mas como pode ser isso? Não há uma
lei?
- Não façam perguntas idiotas. Há uma
lei. A lei da selva. Mas justiça nunca houve no Gulag, nem haverá. Este caso de
Kargopollag é simplesmente um símbolo do Gulag. Depois vocês se acostumam: no
campo ninguém faz nada em vão, ninguém faz nada por bondade. É necessário pagar
por tudo. Se alguém propõe alguma coisa desinteressadamente, é preciso saber
que se trata de algum truque, de alguma provocação. Mas o mais importante é evitar
os trabalhos gerais! Evitem-nos desde
o primeiro dia! Se no primeiro dia caírem nos trabalhos gerais, estarão perdidos para sempre.
- Trabalhos
gerais?
- Os trabalhos gerais são os trabalhos essenciais, os trabalhos que
estão na base da vida de um campo. Deles participam oitenta por cento dos
presos. E todos eles perecem. Todos. E trazem outros em sua substituição, ainda
para os trabalhos gerais. Aí vocês
despendem as últimas forças. E estarão sempre famintos. E sempre molhados. E
sem botas. E roubados no peso. E roubados nas medidas. E postos nas piores
barracas. Sem qualquer tratamento médico. No campo os únicos que sobrevivem são
aqueles que não participam dos trabalhos gerais! Desde o primeiro dia .
A qualquer preço!
A qualquer preço?
Em Krásnaia Présnia eu assimilei e aceitei esses conselhos, em nada
exagerados, do impiedoso prisioneiro de designação especial, esquecendo-me
apenas de lhe perguntar: e qual é a medida desse preço? Qual é o seu limite? p533/34
Os interesses do Estado e os interesses do indivíduo coincidem, como
sempre, também aqui. É também vantajoso para o Estado enviar os presos para o
campo por um itinerário direto, sem sobrecarregar as ruas das cidades, os
transportes rodoviários e o pessoal dos centros de trânsito. Há muito que isso
foi compreendido e assimilado perfeitamente no Gulag: caravanas de trens
vermelhos (vagões para gado pintados de vermelho), caravanas de barcaças e, lá
onde não há ferrovias nem água, caravanas de peões (não se permite que os
reclusos utilizem cavalos nem camelos). p535
Não é qualquer vagão vermelho que pode transportar imediatamente
reclusos. Primeiro, deve ser preparado para isso...
Só depois se pode escrever nos vagões, com giz, obliquamente:
“maquinaria especial” ou “gênero deteriorável”. (No Sétimo vagão, E. Guinzburg descreveu muito bem o transporte nos vagões vermelhos, dispensando-nos,
agora, em grande parte, de mais pormenores.).
Uma vez terminada a preparação do trem vem a complexa e autêntica
operação marcial de embarque dos presos nos vagões. Nela há duas preocupações
importantes e obrigatórias:
- ocultar do povo o embarque;
- aterrorizar os presos. p536
Ocultar o embarque aos habitantes é necessário porque no trem enfiam de
uma só vez cerca de mil pessoas (vinte e cinco vagões, pelo menos; não é como um
pequeno grupo que se põe num stolípin,
coisa que se pode fazer à vista das pessoas). Naturalmente toda a gente sabe
que todos os dias e a todas as horas são efetuadas detenções, mas ninguém deve
horrorizar-se com a visão de tanta gente detida ao mesmo tempo. p537
Estas cenas, indignas dos nossos dias, só revelam uma inábil organização
dos embarques nos trens. Constatados os erros, uma certa noite, o trem é
rodeado por uma matilha de cães-pastores
que ladram e uivam. p537
Os feixes luminosos hostis dos
fantásticos projetores iluminam o chão: eles são parte importante da cena
teatral de intimidação dos presos, paralelamente às ameaças violentas, às
coronhadas aos que se atrasam, às vozes de comando de: “Sente-se no chão!” (por
vezes, como nessa mesma praça da estação de Oriol: “Ajoelhe-se!”, e, como novos
peregrinos, o milhar põe-se de joelhos); simultaneamente a essa corrida para o
vagão, completamente desnecessária mas muito importante para atemorizar, e ao furioso ladrar dos cães, são
apontados canos (das espingardas ou metralhadoras, conforme a época). Objetivo
essencial: deve ser desfeita , aniquilada, a força de vontade do preso, para
que os seus pensamentos não o levem a pensar numa fuga, para que durante muito
tempo não compreenda a “vantagem” da sua nova situação: passagem de uma cadeia
de pedra para um vagão de tábuas delgadas. p538
Os transportes a pé têm sua própria técnica, que se desenvolveu nos
lugares onde são frequentemente empregados. Suponhamos uma caravana sendo
conduzia pelos atalhos da taiga, de Kniaj-Pogost a Veslianoa: de súbito cai ao
solo um prisioneiro e não pode continuar. O que fazer? Pensem bem. Deter a
marcha da coluna inteira? Também não se pode deixar uma sentinela ao lado de
cada retardatário ou de cada um que desmaia. Os soldados escasseiam, e os
presos não. De modo que... o soldado se atrasa um pouco, e em seguida se reúne
à coluna, desta vez sozinho.
Os transportes a pé entre karabás e Spassk se converteram em uma longa
rotina. Deviam cobrir somente uns trinta e cinco ou quarenta quilômetros, mas
tinham que fazê-lo num só dia, com mil homens ao mesmo tempo, muitos deles
debilitados. Nesse caso, é de prever que muitos cairão pelo caminho,
indiferente à ameaça de morte. Disparar contra eles? Não temem a morte, mas
talvez temam o porrete, o incansável
porrete que batem sem parar... Pois bem, já se levantam! Nunca falha, está
demonstrado. Por isso, a coluna de presos tem uma escolta de soldados com
metralhadoras, que se mantém a uma distância de cinquenta metros, como também
outra fila interna de soldados, sem fuzil, mas munidos de porrete. Os
retardatários apanham (como havia previsto o Camarada Stálin); chovem
porretadas, eles perdem as forças mas continuam andando e, milagrosamente,
chegam ao seu destino. Ignoram que se trata da prova do porrete, e aqueles que, apesar dos golpes, não se levanta,
são recolhidos pelas carretas que acompanham a certa distância. É um exemplo de
organização! p553
Fechem os olhos, amigo leitor. Ouve o ranger das rodas? São os stolípin
que passam. São os trens vermelhos que passam. A cada minuto do dia e da noite.
A cada dia do ano. E esta água que marulha? São os barcos de detentos que
vagam. E os motores dos “tintureiros”, observem como roncam. Desembarca-se,
embarca-se, translada-se sem cessar. E este rumor? As celas superlotadas das
prisões de trânsito. E estes gritos? Os prantos das pessoas roubadas,
violentadas, espancadas.
Passamos em revista todos os modos de transporte e concluímos que todos
são péssimos. Fazemos a ronda pelas prisões de trânsito, sem descobrir nenhuma
boa. E a última esperança do homem, de que as coisas ficarão mais suaves e de
que no campo será melhor, mesmo essa esperança resulta vã.
No campo, será pior. p554
Você emerge para a vida livre, perambula pela sala de espera, examina
com olhar ausente os avisos que já não podem prejudicá-lo. Depois, senta-se em
um velho sofá para viajantes, ouve estranhas e fúteis conversas: um marido
espancou sua mulher, ou então a abandonou; uma sogra, quem sabe por quê, se
desentendeu com sua nora; os vizinhos desperdiçaram eletricidade e, para
completar, não limparam os pés. Alguém se atravessou no caminho do outro, e
alguém mais prometeu a quem quer que seja um bom emprego, mas noutra cidade. E
como fazer para suportar tantas besteiras? Isso não é uma insignificância?
Enquanto você ouve tudo isso, sente um súbito calafrio causado pela resignação:
percebe, com clareza, a verdadeira medida de todas as coisas no mundo
circundante! A medida de todas as
fraquezas e paixões! E essa percepção é verdade aos pecadores ao seu redor.
Somente você, o incorpóreo, vive realmente, de verdade; os demais, esses
infelizes, creem estar vivos mas se equivocam.
O abismo entre nós é intransponível! Impossível exorta-los ou acusa-los,
toma-los pelos ombros e sacudi-los: você é espírito, um fantasma, e eles,
corpos materiais.
Como fazê-los compreender (por uma iluminação? Por uma aparição? Em
sonho?): Irmãos! Homens! Para que a vida lhes foi dada? No meio de uma noite
escura, abrem-se as portas das câmaras da morte e seres humanos de almas
grandiosas se encaminham para o fuzilamento. Nesse mesmo instante, a essa mesma
hora, tais criaturas viajam por todas as estradas de ferro do país; depois de
engolir um arenque, passam a língua pelos lábios ressequidos, sonham com o
prazer de estirar as pernas, de ficar tranquilos após ter feito suas
necessidades. Em Orotukan, a terra derrete só até um metro de profundidade, e
apenas no verão; só então é possível enterrar ali os despojos dos que morreram
durante o inverno. Mas vocês têm sobre suas cabeças o céu azul e, sob o cálido
sol, o direito de decidir seu próprio destino, beber água, sentar esticando as
pernas, viajar para onde quiserem. Que história é essa de sapatos sujos, e qual
a importância da sogra? Querem que lhe revele agora o segredo mais essencial da
vida? Não persiga o enganoso, nem as posses, nem os títulos: tudo isso se paga
à custa dos nervos, década após década, e numa só noite pode ser confiscado.
Vivam com serena superioridade perante a vida... Não temam a desdita nem
anseiem pela felicidade, pois ambas as atitudes vêm a ser o mesmo. A amargura
não se prolonga eternamente, e a medida do prazer nunca se completa. Alegrem-se
se não tremem de frio, se as garras da fome e da sede não dilaceram suas
entranhas. Vocês não têm a espinha quebrada, suas duas pernas andam, seus dois
braços se dobram, seus dois olhos enxergam e seus dois ouvidos escutam – quem
poderia vocês invejar? E por quê? A inveja é o que mais nos tortura. Esfreguem
bem os olhos, purifiquem seus corações, então poderão aquilatar perfeitamente
quem verdadeiramente lhes quer e deseja o bem. Não lhes façam nenhum mal, não
pronunciem palavras malévolas contra eles, não permitam que as brigas os
separem, pois quem pode saber se este não é o seu último ato antes de serem
presos? E isso lhe pesará na memória!... p557/8
"Feche
os olhos, amigo leitor.
Ouve
o ranger das rodas? São os stolípin
que passam.
São
os trens vermelhos que passam.
A
cada minuto do dia e da noite.
A
cada dia do ano.
E
esta água que marulha?
São
os barcos de detentos que vagam.
E
os motores dos “tintureiros”, observem como roncam. Desembarca-se, embarca-se,
translada-se sem cessar.
E
este rumor?
As
celas superlotadas das prisões de trânsito.
E
estes gritos?
Os
prantos das pessoas
roubadas,
violentadas,
espancadas."
Alexandre Soljenítsin
Círculo do Livro
O holocausto russo
(Gulags - Campos de Trabalhos Forçados) foi tão ou mais hediondo que o próprio
Holocausto, no mais das vezes os “inimigos” eram pessoas humildes da própria
Rússia que nem sempre tiveram a “sorte” de morrer logo... foram definhando em
sofrimentos indizíveis sendo jogados de um lado para outro até morrerem à míngua
enquanto eram esfolados vivos por carrascos da mesma nacionalidade.
As vezes, ao meio
da noite,
as fechaduras
rangem e os corações gelam:
será para mim:
Não, não é para
mim!
E o guarda abre a
porta de madeira para dizer qualquer coisa absurda:
“Recolham as
coisas que estão no parapeito da janela!”
Esse simples ato de
abrir a porta
pode ter tirado a
todos os catorze um ano de vida;
bastara talvez
repetir uma meia centena de vezes essa operação para já não ser necessário
gastar uma bala!
Mas como todos lhe
ficaram agradecidos,
por te terminado
tudo bem:
“Vamos já
guarda-las, cidadão-chefe!”
Adquirida
consciência, entendendo minimamente o “Processo Terra”, compreendemos
finalmente que nada há a ser feito a não ser colaborar com o próximo, tentando
ampará-lo, minimizar o fardo daquele que ignora; é certo que não é possível
concordar com o sistema sócio/político Terra, mas, ao ler Arquipélago Gulag, é
certo também que o melhor a fazer, - ao menos em uma sociedade sã, o que não
foi o caso nestes anos negros a que faz referência Alexandre Soljenítsin - é não ir contra a ânsia humana egoísta, e que
um ente puro não consegue nem de longe perceber as intenções de um ente doente.
(20.09.2020 após ler as pgs. 380 a 390)
Nossas percepções
a cada dia se esvanecem em meio às ilusões que potencializam os descasos
humanos, porém, atentar-se ao menos para a percepção da não necessidade do
vazio contato alheio privaria cada um de nós de terríveis dissabores; o que nos
facilitaria viver um pouco mais próximo das portas do que Alexandre Soljenítsin
chama de Altai.
Alexandre; obrigado
por sua generosidade para com seus amigos de cárcere e para com o mundo; por
seus extenuantes esforços; por esta visceral compilação; por este Livro Extraordinário.
Desejo de todo o meu coração que o que é que você tenha conquistado com seu
sofrimento e seus esforços te conduza a um Espaço/Tempo muito além ao tão
desejado “Altai”.
“Ah! Se fosse possível refugiar-se nessa paz! Ouvir
o canto claro e sonoro do galo sob um ar límpido! Acariciar o focinho de um
cavalo sério e bonacheirão! E que vão para o diabo todos os grandes problemas,
que quebre com eles a cabeça alguém mais estúpido do que eu! Repousar ali das
injúrias do investigador, desse fastidioso desenrolar de toda a sua vida, do
barulho das fechaduras da prisão, do asfixiante ar viciado da cela. A vida que
nos é dada é tão pequena, tão curta! E nós a expomos criminosamente a uma
metralhadora qualquer e nos imiscuímos com ela, assim pura, no sórdido lixo da
política! Lá, no Altai, eu viveria na mais baixa e obscura cabana do extremo da
aldeia, na orla do bosque. E iria ao bosque não para apanhar lenha seca ou
cogumelos, mas simplesmente para errar entre as árvores, de que abraçaria os
troncos: meus queridos! De nada mais preciso!...” p266
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