As bodas de
Mercúrio e Filologia
História de
maior expressão e de fundamental importância na mediação entre a cultura pagã
da Antiguidade tardia e a incipiente cultura do Ocidente cristão, Marciano
Capela traz este texto escrito de forma literária mista de versos e prosa
conforme tradição da sátira menipéia, retirado aqui do livro A arte de ter razão de Arthur Schopenhauer,
dando conta de que a cultura cristã afortunadamente o acolheu por toda a Idade
Média. “Trata do De nuptiis Mercurii et
Philologiae, em que encontramos, no limiar da nossa era, uma exposição
representativa da dialética e, portanto, um testemunho significativo da
transmissão do corupus dialecticum da
Antiguidade tardia ao Ocidente latino.”
E segue no livro p75:
Os deuses
do Olimpo, narra Marciano Capela, preocupavam-se com o fato de que Mercúrio,
deus da linguagem e da palavra, ainda não havia encontrado uma esposa adequada.
Para pôr fim ao seu duradouro celibato, arranjaram para ele se casar com uma
virgem mortal, Filologia, Símbolo do amor pelo logos, a qual, depois da união
com Mercúrio, foi recebida entre os imortais. A cerimônia nupcial se dá em
presença das divindades olímpicas, reunidas em torno de Júpiter. A noiva chega
acompanhada de sete damas de honra, que personificam as sete artes liberais: as
três do discurso, isto é, gramática, dialética e retórica (o trivium), e as quatro do número, isto é, geometria, aritmética,
astronomia e música (o quadrivium).
Cada uma das sete damas de honra expõe os conteúdos do saber que representa e,
no fim das bodas, será consagrada a união do infinito poder da linguagem com
sua manifestação num saber cientificamente ordenado.
Para nós, é
interessante o comparecimento, no quarto livro da obra, da Dialética,
personificada por uma dama de honra que avança em segundo lugar, logo atrás da
Gramática. Marciano Capela descreve cuidadosamente sua aparência, seu porte e
seus atributos. Tem o resto pálido, mas seu olhar é inquieto e penetrante; seus
cabelos, densos mas ordenadamente trançados, adornam sua cabeça de modo acurado
e completo; usa a túnica e o pálio de Atenas e traz nas mãos os símbolos do seu
poder: na esquerda, uma serpente enrolada em enormes espiras e, na direita,
plaquetas com esplêndidas e coloridas ilustrações, presas por um gancho oculto;
e, enquanto a esquerda esconde sob o pálio suas insídias viperinas, a direita é
a todos exibida. O aspecto da Dialética é, no conjunto, agressivo e ameaçador,
e ela profere em voz alta, em tom sacerdotal e divinatório, fórmula
incompreensíveis para a maioria: que a afirmativa universal se contrapõe de
modo oblíquo à particular negativa, e que ambas são conversíveis; fala também
de univocidade e equivocidade e assevera ser a única capaz de distinguir o
verdadeiro do falso.
Uma entrada
em cena cheia de tensão, que causa certo mal-estar nos deuses, mas que Brômio,
isto é, o “barulhento” Dionisio-Baco, desdramatiza, observando o quanto a
recém-chegada se parece com uma bruxa charlatona, que provoca, entre os
espectadores, certa hilariedade. Mas a deusa Palas, que conhece bem a
Dialética, intervém para dizer que ela não é personagem de quem se possa
zombar, como se verá assim que ela expuser em latim o seu saber. A dialética
declara em exórdio ter origens gregas, mas que poderia expressar-se igualmente
em latim graças ao precioso trabalho de mediação levado a cabo por Varrão, o
primeiro a traduzir seus ensinamentos na língua dos romanos, depois de
aprendê-los nos textos de Platão e de Aristóteles. No entanto, seu nome, Dialética,
manteve-se em grego, permanecendo igual em Atenas e em Roma. A Dialética começa
então a expor seu ensinamento, que compreende, de acordo com a ordem em uso nas
escolas gregas, retomada por Varrão, todo o corpus
de doutrinas da lógica clássica, articulado do seguinte modo:
1) De
loquendo, isto é, a
doutrina do significado dos termos, que compreende os cinco predicáveis
(gênero, espécie, definição, próprio, acidente), os antepraedicamenta ou instrumenta
categoriarum )isto é, a distinção de diversos ritos de denominação:
equívoca, unívoca, plurívoca, própria, alheia), as categorias (substância,
quantidade, qualidade, relação, espaço, tempo, fazer sofrer, estado, hábito),
os post-praedicamenta (isto é, as
quatro formas de oposição: contradição, privação, contrariedade, relatividade),
a definição e a divisão;
2) De
eloquendo, isto é,
a doutrina do discurso e das suas partes (nomen
e verbum, que formam a oratio);
3) De
proloquendo, que
compreende a doutrina da proposição predicativa ou juízo (proloquium), que, como síntese ou diairese de representações, tem a característica de poder ser
verdadeiro ou falso, as differentiae
proloquiorum (ou seja, a qualidade afirmativa ou negativa e a quantidade
universal ou particular dos juízos), o proloquiorum
affectiones e a conversão das proposições;
4) De
proloquiorum summa,
vale dizer, a doutrina do silogismo como concatenação de proposições e as suas
diversas formas (categórico, hipotético e misto)
Depois da
exposição desses seus ensinamentos, a Dialética se apresta a continuar com a
ilustração da doutrina dos sofismas, dos raciocínios capciosos, das falácias e
dos enganos que é possível perpetrar por meio da palavra, argumentos tratados
nas Refutações sofísticas de
Aristóteles. Mas aqui intervém Palas,
que interrompe a Dialética, não apenas para não cansar o auditório, mas também
porque a exposição dos enganos sofísticos não convêm diante de Júpiter e das
outras divindades. Diz então Palas, dirigindo-se à Dialética para
interrompê-la: “Já chega, ó nobre fonte da ciência profunda (profundae fons decens scientiae), que
desvela as realidades ocultas, dissertando sem omitir nada que seja pouco claro
nem abandonando nada que seja ignoto.”
No que concerne
à nossa história, dois pontos desse texto devem ser postos em evidência. O
primeiro é que a dialética é considerada apropria fonte do saber científico (fons scientiae) e é tendencialmente
identificada com a lógica, entendida como o conjunto das regras do raciocínio e
da argumentação corretos, destinadas a discernir o verdadeiro do falso. O outro
é que a dialética, justamente por sua natureza de fonte do saber, é separada
com rigor da sofística e da erística, que do saber só têm a aparência.
A presença dessa ideia de dialética
entre o final do mundo antigo e o início da nossa era, documentada de forma tão
plástica pelo De nuptiis, é
posteriormente confirmada por outros textos muito difundidos na Idade Media, em
que é possível reencontrá-la, como as Institutiones
de Aurélio Cassiodoro, as Etymologiae
de Isidoro de Sevilha ou o De dialectica
de Alcuíno. Podemos recordar também o De
dialectica (ou Principia dialecticae),
obra bastante difundida, de autenticidade duvidosa, mas talvez de santo
Agostinho, que define a dialética como a disciplina disciplinarum ou a scientia
veritatis.
Temos, portanto, na transição do mundo
antigo ao mundo da “idade mediana”, uma ideia decididamente positiva da
dialética, entendida como fonte de ciência, que não deixa de surpreender,
depois de se ler o texto de Schopenhauer. Perguntamo-nos: como tudo isso foi
acontecer? Como se chegou a ver na dialética a fonte da ciência?
*
Particularmente,
ao perceber a força envolta em renomadas opiniões historicamente oficializadas
que consagram à Dialética as mais elevadas referências, é nosso dever defender
que, analogamente, ela seria a síntese da existência observável. Onde cada qual
crê firmemente em uma verdade inventada; “o mito nosso de cada vida”.
Pode que a
dialética dos deuses ou dos grandes gênios trafegue no que nós simples mortais
entendemos por verdade ou mentira com importância descuidadamente diferenciada (por
que deveriam eles escusas; evasivas ou não?); por conta da obviedade natural - há
tempos preterida ao próprio estado instalado por assumido descompromisso -, e sempre
imatura. Conquanto, esses tentam decifrar o que aqueles não veem motivo sequer
de abrir discussão. Talvez nos falte perceber que os homens que detém as chaves
da nata ou artificialmente criada sabedoria, não têm relação apenas com a
matéria palpável por estarem eles, credenciados à transcendência.