sábado, 4 de março de 2017

“Teia de significados”





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Mas no decorrer de décadas e de séculos a teia de significados se desfia e uma nova teia estende-se em seu lugar. Estudar história significa observar a tecedura e o desfazimento dessa teia e dar-se conta de que o que parece ser, o que há de mais importante na vida de alguém em determinado período torna-se para seus descendentes algo totalmente desprovido de significado.

Em 1187 Saladino derrotou os cruzados na batalha de Hattin e conquistou Jerusalém. Em resposta, o papa deu início à Terceira Cruzada com o propósito de recapturar a cidade sagrada. Imagine um jovem nobre inglês chamado John, que deixou sua casa para conter Saladino, John acreditava que suas ações tinham um significado objetivo. Acreditava que, se morresse na cruzada, após a mote sua alma ascenderia ao céu, onde iria usufruir da eterna felicidade celestial. Ele ficaria horrorizado se viesse a saber que a alma e o céu eram apenas histórias inventadas pelos humanos. John acreditava de todo coração que, se chegasse à Terra Santa e algum combatente muçulmano com um grande bigode desferisse um golpe de machado em sua cabeça, sentiria uma dor insuportável, um som agudo nas orelhas, suas pernas ruindo, sua vista escurecendo – e no instante seguinte veria uma luz brilhante à sua volta, ouviria vozes angelicais e harpas melodiosas, e radiantes querubins alados lhe acenariam do outro lado de um magnífico portão dourado.

John tinha uma fé muito forte porque estava enredado numa teia de significado extremamente densa e poderosa. Suas lembranças mais remotas eram as da espada enferrujada de seu avô Henry pendurada no salão principal do castelo. Desde pequeno, John ouvia histórias sobre Henry, que morrera na Segunda Cruzada e que está descansando com os anjos no céu, protegendo John e sua família. Quando menestréis visitavam o castelo, costumavam entoar canções sobre os bravos cruzados que tinham lutado na Terra Santa. John ia à igreja, gostava de olhar os vitrais das janelas. Uma delas mostrava Godofredo de Bulhão montado a cavalo e empalando em sua lança um muçulmano de aparência maligna. Outra mostrava as almas dos pecadores ardendo no inferno. John ouvia atentamente o sermão do sacerdote local, o homem mais instruído que conhecia. Quase todo domingo o sacerdote explicava – com a ajuda de parábolas bem trabalhadas e anedotas hilariantes – que não havia salvação fora da Igreja Católica, que o papa em Roma era o santo padre e que seus comandos deveriam ser sempre obedecidos. Se assassinarmos ou roubarmos, Deus nos enviará ao inferno; mas, se matarmos muçulmanos infiéis, Deus nos dará as boas-vindas no céu.





Um dia, quando John estava para completar dezoito anos, um desgrenhado cavaleiro chegou ao portão do castelo e com voz embargada deu a notícia: Saladino destruíra o exército cruzado em Hattin! Jerusalém havia caído! O papa tinha declarado uma nova cruzada, prometendo salvação eterna àqueles que nela morressem! Por toda parte as pessoas pareciam estar chocadas e preocupadas, mas o rosto de John Iluminou-se com um brilho sobrenatural, e ele proclamou: “Vou combater os infiéis e libertar a Terra Santa!”. Todos fizeram silêncio por um instante, e depois sorrisos e lágrimas surgiram no rosto de seus familiares. Sua mãe enxugou os olhos, enlaçou-o em um grande abraço e lhe disse quanto estava orgulhosa dele. Seu pai deu-lhe um poderoso tapa nas costas e disse: “Se eu ao menos tivesse a sua idade, filho, juntar-me-ia a você. A honra de nossa família está em jogo – tenho certeza de que você não nos desapontará!” Dois de seus amigos anunciaram que iriam também. Mesmo o adversário jurado de John, o barão que vivia do outro lado do rio, fez-lhe uma visita para lhe desejar boa sorte.

Quando John deixou o castelo, aldeões saíram de suas choupanas para lhe dar adeus, e todas as garotas bonitas olhavam emocionadas para o bravo cruzado que partia a fim de combater os infiéis. Depois que zarpou da Inglaterra para percorrer seu caminho atravessando terras estranhas e distantes – Normandia, Provença, Sicília -, a ele se juntaram bandos de cavaleiros estrangeiros, todos com o mesmo destino e a mesma fé.  Quando o exército finalmente desembarcou na Terra Santa e entrou em luta com as hostes de Saladino, John ficou assombrado ao descobrir que até mesmo os malvados sarracenos compartilhavam suas crenças. De fato, eles estavam um pouco confusos, pois pensavam que os cristãos eram os infiéis e que os muçulmanos é que estavam obedecendo às ordem de Deus. Mas também eles aceitavam o princípio básico de que os que lutavam por Deus e por Jerusalém iriam diretamente para o céu quando morressem.

Dessa maneira, fio por fio, a civilização medieval estendeu sua teia de significados, apanhando John e seus contemporâneos como se fossem moscas. Para o jovem, era inconcebível que todas essas histórias fossem apenas invencionices. Talvez seus pais e tios estivessem errados. Mas também os menestréis, e todos os seus amigos, e as garotas da aldeia, o ilustrado sacerdote, o barão do outro lado do rio, o papa em Roma, os cavaleiros provençais e sicilianos, e até os próprios muçulmanos – seria possível que todos eles estivessem alucinando.

E passaram-se os anos. Enquanto historiadores a observam, a teia de significados se desembaraça e outra se estende em seu lugar. Os pais de John marrem, e depois deles todos os seus irmãos e amigos, Em vez de menestréis cantando sobre as cruzadas, a moda em voga é cantar sobre trágicos casos de amor. O castelo da família foi totalmente destruído pelo fogo e, depois de reconstruído, não se vê nenhum traço da espada do avô Henry. As janelas da igreja se despedaçaram durante uma tempestade de inverno e o vidro que substitui o vitral não mais representa Godofredo de Bulhão e os pecadores no inferno; em seu lugar, vê-se o grande triunfo do rei da Inglaterra sobre o rei da França. O sacerdote local já não chama o papa de “nosso santo padre” – agora ele é mencionado como “aquele demônio em Roma”. Na universidade próxima, os estudiosos estudam os manuscritos dos gregos antigos, dissecam cadáver e sussurram atrás de portas fechadas que talvez não exista essa coisa de alma.

E os anos transcorrem sem parar. Onde uma vez houve um castelo, existe hoje um centro comercial. No cinema local está passando Monty Pyton em busca do cálice sagrado pela enésima vez. Numa igreja vazia, um vigário entediado fica satisfeito ao receber dois turistas japoneses. Ele dá uma longa explicação sobre o vitral nas janelas, enquanto seus interlocutores sorriem educadamente, assentindo sem entender nada. Na escadaria no lado de fora, um bando de adolescentes brinca com seus iPhones. Estão assistindo a um remix recém-lançado de “imagine, de John Lennon. “Imagine que não existe céu”. Canta Lennon, “é fácil tentar”. Um gari paquistanês está varrendo a calçada, enquanto um rádio nas proximidades transmite as notícias: a carnificina na Síria continua, e a reunião do conselho de Segurança terminou num impasse. Subitamente abre-se um buraco no espaço, e um misterioso raio de luz ilumina o rosto de um dos adolescentes, que anuncia: “Vou combater os infiéis e libertar a Terra Santa!”.

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No Livro, Homo Deus, p152 – 155
Yuval Noah Harari.























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