sábado, 31 de julho de 2021

Do tornar útil a expiação Terra

 



Inevitavelmente, em algumas polêmicas, até ontem aventava sobre ser contra ou a favor. Mas esta semana, ao avaliar uma matéria sobre Transumanismo decidi de uma vez por todas que não sou mais conta nada que leve à experiência prática. Preciso fazer um adendo e salientar que continuo contrário àquelas que se utilizam de espoliar o planeta, de fazer sofrer ou trazer sofrimento a todo e qualquer ser vivo.





Este é um Plano Expiação. O Planeta Terra é um Planeta Expiação. Não demovo um grão deste meu pensar. Até então minha compreensão estancava especialmente nesta afirmação e pouco percebia, pouco aludia ao micro da coisa. Devemos entender que o “micro” aqui descrito é tudo o que temos abaixo do item principal: que este é um Planeta Expiação.





Os transumanistas irão revolucionar o mundo; então vou me desembestar para eles? É claro que não. Apenas tomei conhecimento de uma matéria minúscula e atentei para uma mudança de interpretação; só. Os processos de melhoramento humano, inegavelmente, sempre estarão associados a moral, educação e religião – esta como condição sine qua non da conexão do ser humano com o Espírito do Tempo – itens prioritários a evolução do homem como ser agente não avalizados por materialistas. O que Francis Fukuiama disse “que o Transumanismo é a ideia mais perigosa do mundo” é em parte verdade, e foi do seu apontar que nasceu minha certeza e este exercício que simboliza uma nova era do meu pensamento. A partir de agora perspectivas foram ampliadas e saliento: elas já o eram muito além da média ordinária. A sinalização de Fukuiama seria uma redundância se não fosse uma opinião pessoal sobre o assunto sugerindo a atenção sempre necessária as grandes revoluções humanas – um problema patente; nem sempre essa atenção é levada em consideração às últimas consequências.





Estamos em constante evolução material, tecnológica, de exploração; nano tecnologia e tecnologia embarcada, indústria 4.0, A.I., por exemplo. Não há como estancar esta sangria acordada no homem. No entanto é estarrecedor que na mesma proporção em que nos desenvolvemos tecnicamente, no sentido inverso nos distanciamos da evolução espiritual; em busca do homem introspectivo. Isto me assolou por quase três décadas; não mais. Joguei a toalha? Não. Estou ainda mais entusiasmado com meu último insight.





Expiação útil - É terrivelmente incrível, porque Meus Guias; Meus Mestres sempre alertaram sobre a ilusão de acordar as pessoas à abundância da vida, ao “há mais”; estão sempre lembrando: “isto de acordar não existe” e muito aos poucos percebo: este é um lugar como um colo de mãe – viu como estou mudando, poderia dar um exemplo pejorativo. Tudo cabe no Planeta Expiação. Tudo está acontecendo agora com uma urgência jamais imaginada e dentro disso o que todos estão fazendo além de se tornarem bons no que fazem além de sobreviver? Expiando. Torná-la ou não útil não só é uma questão de “tempo”, mas de amadurecimento. E quanto a isso, nada a fazer. Porém o que está sendo construído para o sim ou para o não, faz parte do processo - isso sim é redundância; truísmo; mais do mesmo.




É preciso clarear que o expiar não deve ser avaliado sobre o contexto religioso e sim, Sagrado. Há tempos trabalho a amplidão das minhas percepções e uma informação superior jogou luz para o fato de que tudo existe, portanto nesse tudo está incluído todas as nossas imaginações o que denominamos de “penso, logo existe” diferentemente de Descartes. Não vou voltar a isso. Exaustivas observações já apontadas neste espaço clareiam esta máxima. E ao contrário do que o novo mundo espera: que tudo venha mastigado a uma chamada de voz à “Alexa”, aqui é diferente. Estou na rotação do vinil, nada neste espaço é mastigado, tudo é fatiado em pedaços nada deglutíveis às primeiras impressões.





Grande Espírito – Consciente ou inconscientemente, caminhos e caminhos e caminhos estão a toda hora sendo criados, iniciados à revelia de vontades, aleatoriamente, projetados ou não; é assim que é. É isso que fazemos. Estes caminhos, todos, têm um porquê da vontade ou ímpeto de ação de seus autores e este ânimo pode ser prático, pragmático e ainda que egoísta, e aqui está o pulo do gato, sempre poderá ser adotado. Aproveitando a máxima de Lavoisier; nada é totalmente desperdiçado tenha o autor motivações altruístas ou vis, porque eles se cruzam com todos os demais. Se entrecruzam, formando uma teia caótica; porém tudo é energia e este é o ponto; toda energia é condensada no Espírito do Tempo.





Deste caos de representações há algo maior sendo construído, sendo experienciado. E dessa infinitude, ainda que haja o colapso entre eras e a Terra precise ser reenergizada a comportar todo o estado original das espécies; toda energia gerada não é perdia e a medida do possível é injetada paulatinamente nas novas civilizações até chegar ao ponto em que àquelas provocada antes da exploração total do planeta possam garantir uma sobrevivência além da anterior, e em conjunto, o experienciar individual do homem.




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Tá agarrado

 



 

Uma vez no inferno; disse jamais ter visto o Diabo.

Provérbio Otomano

 



“Porque o diabo não tenta os descrentes e pecadores, que já são dele, e sim os devotos piedosos e religiosos, os quais tenta e atormenta de diversas maneiras.

Imitação de Cristo – Tomás de Kempis

 




Meu irmão

Se liga no que eu vou lhe dizer

Depois que ele for eleito

Dá aquela banana pra você, podes crer

 

Candidato Caô Caô

Bezerra da Silva



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Soluções pra que?

 



Novamente um qualquer no Zap questiona opinando... “Carai, vc só mostra os pobrema; se vc se acha o bam bam bam, kd as solução?


*





No início do século falei para um desses que perguntam sem querer ouvir a resposta, que meus calhamaços juntavam mais de três dezenas de livros, então perguntou, “e porque não publica”, respondi, “pra quem? ”.







“Cada um com seus problemas”, como diz meu chegado, Borrachinha. Quem é que quer a solução? Se você me apontar um ao menos, posso aventar uma conversa.



Solução há, o que míngua a olhos vistos; é à vontade.




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5.SOMBRAS

 



“Quem dera eu possuísse

A força

De ser oculto

Ser do espírito

O dono

E ter a visão

Transparente

Do meu

Vulto.”

Rosângela Stononga







(Textos da década de 80 da Minha Esposa, ainda muito jovem; artesanalmente ordenados como um pequeno livreto, recentemente resgatado, que resolvi transcrever para este espaço divididos em posts semanais)


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sábado, 24 de julho de 2021

Dos espelhos indesejáveis

 



Das imagens que não buscamos no espelho





“A tarefa não consiste em dominar resistências em geral, mas em dominar aquelas diante das quais se tem de recorrer a toda força própria, a toda a agilidade e maestria próprias no manejo das armas, em dominar adversários iguais a nós”.

 

Nietzsche; Ecce Homo




 



Quando Nietzsche na frase aponta “iguais a nós”, de repente fiquei imaginando que todos aqueles com quem venho me incomodando são também esses “nós”.





Aí nova perturbação; esse apontar, ainda que enalteça minhas vontades me rebaixa, ou no mínimo deve fazer com que eu me situe...





... e temos aí, uma vez mais este bigodudo inconveniente, o mestre xereta que não queremos encarar, sempre metendo no nosso, e o que resta é meter o rabo entre as pernas e acovardado: entender que me trato eu, também, ainda, de um vira lata perturbado.







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É mentira II - Das verdades inventadas

 



Que influências - as mais severas - as últimas gerações sofreram a partir do histórico mentiroso a que nascem submetidas?




Até onde mentiras deslavadas advindas do comportar hipócrita que assombra o razoável, a (à) falta ou a má explicação; inúmeras pontas soltas; contas que não fecham originadas nas e das instituições; são combustíveis para o descrédito e a descrença e como consequência; a que grau a irrealidade atolou a todos em um poço sufocante de verdades inventadas?





Após dar uma passada nas notícias do dia foram estas as questões que atacaram minha cachola. Pensei em exercitar a escrita, porém o tempo – está frio e dormi além da conta para minha prática dominical – me obrigaram a uma pequena anotação... ou seria porque, em alguns momentos nossos humores não estão dispostos para o que vem à mente, e então o que há a fazer é respeitar as vontades!?!





Acabei de ler Arquipélago Gulag e, a partir de agora, “por uns três dias” – um número simbólico, é claro - como diz minha esposa, tudo nos parece pouco. Todo o sofrimento humano a partir de então é nada comparado com aquilo. Daí, infelizmente, a passividade diante das atrocidades que ocorrem a olhos vistos: é certo que não devem nos conformar, porém, se um único espírito, um espectro, um kulak que hoje pastoreia no “altai” vem nos aconselhar sobre as barbaridades que estamos assistindo: um nada; perto das aflições daquele real universo russo. Levando-nos a entender, que nossas mimadas*, espetaculosas, midiáticas e teatrais revoltas não fazem sentido, afinal como muitos já frisaram “está tudo aí, basta procurar”.




 


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É mentira

 



Mentiras derivando de outras mentiras ou de inverdades. Antes do que se nomeou por Fake News não as tínhamos? Sim; e elas permanecem aí. Até onde o mundo faz parte de uma mentira muito bem montada e até onde vamos ao desconfiar do enredo? Abandonando o rigor, sempre tivemos as mentiras oficializadas, consideradas aqui: primeiras mentiras ou mentiras clássicas. Depois temos a mentira propriamente dita, esta do dia a dia que costura nossas formas mais ou menos mentirosas de vida – ou o que os especialistas adotaram como “mentiras sociais” (branca, benéfica, construtiva etc.); aquelas do eu sei que você sabe que eu sei que você sabe, mas é assim que a banda toca – na linha da série Loki. Tudo levando a um terreno escorregadio.




Aqui as classificações tomam rumos inusitados incluindo aquelas, de ordem patológica. No momento estamos oficializando e oportunizando o movimento Fake News; mentiras que os próprios mentirosos não aceitam – e dizem abominar - e as “combatem” de todas as maneiras. Então nos perguntamos; elas não surgiram justamente por conta do estado mentiroso a que o mundo convencionou desde sempre? E quantos as combatem tal qual negam ser a favor dos espetáculos de barbárie enquanto lucram com eles?




A ideia de mentira aqui disposta pode ser ilustrada sob o aspecto do mito da celebridade chinfrim. Quando não se é nada quer o estrelato, e quando, ainda nada, empenou o suficiente para voar acima da ralé; não quer a presença desses, que as estimularam ao pedestal ilusório tão desejado.






A mentira é a mola mestre, a base, o pilar de uma sociedade doente, patologicamente hipócrita, porém, por mais ambíguo que possa parecer; mesmo a um universo mentiroso, a mentira precisa ser controlada e mentirosamente, mais uma vez, usa-se o combate a mentira para camuflar como a mentira é tratada com seriedade.




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4.O ÚLTIMO SONHO

 




Todas as ruas atravessei

Avenidas, ladeiras, atalhos, inúmeros cruzei

Horizontes, para muitos olhei

Mas um só consegui ver


E de todos os meus passos, corridas, tropeços,

Um só caminho pude percorrer

O homem, mesmo em sua sabedoria ou sobrevivência

Dentro de si eu o vi carregando

O verdadeiro valor da vida

Em cada um senti, a mais poderosa força que o Universo já criou

O amor possuí

De todo e para todos os povos, raças, gerações

Vi o brilho eterno do último preâmbulo de paz

Encontrei reis, escravos, brancos e negros

Poderosos e humildes

Na igualdade e na justiça

Me acompanhando, me seguindo

Vi interminável esse tempo, diante de mim

Até chegar o meu fim




E agora,

Mesmo tropeçando e com as pedras rolando

Olho para aquele que procura seu caminho

Que pisa em espinhos e incansavelmente continua,

Enquanto houver horizonte.




Rosângela Stononga








(Textos da década de 80 da Minha Esposa, ainda muito jovem; artesanalmente ordenados como um pequeno livreto, recentemente resgatado, que resolvi transcrever para este espaço divididos em posts semanais)




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sábado, 17 de julho de 2021

Arquipélago Gulag – “pinçamentos”

 







"E o vaivém continua!

Trazem-nos,

levam-nos,

um por um ou em grupos,

enviam-nos sabe-se lá para onde,

em levas.

Tudo tem um ar tão sério

e tão inteligentemente planejado,

que não se pode acreditar que nisso

exista tanto absurdo"


 




 


Dos ruídos do fuso da vida

Neste aglomerado de estrofes está um conjunto de textos desconexos a todo aquele que passar por este plano sem ler a Obra Prima “Arquipélago Gulag – 1918-1956 de Alexander Solijenítsin. Dado nossos princípios, este espaço se viu no dever de prestar envergonhada homenagem para demonstrar minimamente a nossa compaixão com os milhões de assassinatos – oficiais e não oficiais - causados direta e indiretamente naquilo que deveria ser considerado um ato ainda pior que o próprio Holocausto Alemão. “Quando calculamos os milhões de homens que pereceram nos campos, esquecemo-nos de multiplica-los por dois ou por três...”


 



 

Só não se esqueça de uma coisa: você mesmo seria um cepo desses, se não tivesse tido a sorte de se tornar uma peça da engrenagem dos “Órgãos” – esse ser vivo, flexível, completo, que habita no Estado como a tênia no homem. Tudo lhe pertence agora, tudo é para você, mas só com a condição de ser fiel aos “Órgãos”! Eles sempre intercederão por você! Sempre o ajudarão a engolir todo aquele que o ofende! E retirarão qualquer obstáculo do seu caminho! Mas seja fiel aos “Órgãos”! Faça tudo o que eles lhe ordenem! São eles que pensam por você e que designam o seu lugar: Hoje você pode ser da seção especial e amanhã pode ir ocupar o cadeirão do comissário de instrução, para em seguida ser destacado como etnógrafo para o lago Seliguer, em parte também para tratar dos nervos. Depois você será transferido de uma cidade onde já se tornou demasiado famoso para o outro extremo do país, como encarregado para os assuntos da Igreja. Ou passará a ser o secretário responsável da União de Escritores. Não há que se admirar de nada: a verdadeira função e categoria das pessoas sabem-na unicamente os “Órgãos”, aos demais deixam-nos simplesmente representar: ali onde se vê um mestre emérito das artes ou um herói do trabalho socialista, sopra-se e ele desaparece. p154





Depois, o exército de Vlássov começou a retroceder para o lado dos americanos, para a Baviera: toda a sua esperança estava posta agora nos Aliados, no que pudessem vir a ser-lhes úteis. Assim ganharia no fim de contas um sentido a sua prolongada suspensão na corda da forca alemã. Mas os americanos receberam-nos com uma muralha armada e obrigaram-nos a entregar-se às mãos dos soviéticos, como tinha sido previsto na Conferência de Ialta. E nesse mesmo mês de maio, na Áustria, Churchill deu também um passo de aliado leal (que pela nossa habitual modéstia não foi divulgado entre nós), entregando ao comando soviético um corpo cossaco de noventa mil homens, bem como muitos carros repletos e mulheres, que não desejavam regressar às margens dos rios cossacos pátrios. (O grande homem, cujos monumentos com o tempo cobrirão toda a Inglaterra, decidiu também entrega-los à morte) p255-6




Estava subordinada unicamente ao ministro do Interior, a Stálin e a Satanás... p279






"É melhor enganar-se na clemência do que na punição". p281






Ao enxugar-se, Valentin disse-me com ar tranquilizador e pacífico:

- Não importa, ainda somos jovens, ainda temos tempo de viver. O principal agora é não dar passos em falso. Quando chegarmos ao campo, nem uma palavra com quem quer se seja, para que não caiam sobre nós novas condenações. Trabalharemos honradamente, e, quanto ao resto, calar, calar.

Tanta era a fé que punha nesse programa, tanta era a esperança que tinha este inocente grão apanhado entre as pedras de moer stalinistas! Sentíamos vontade de estar de acordo com ele, do cumprir comodamente a sentença e de varrer depois da cabeça tudo o que tínhamos sofrido.

Mas uma sensação começou a emergir de dentro de mim: se para viver é preciso não viver – então para quê? p275





É verdade que o coração fica um pouco aliviado quando ouvimos mais adiante dizer que o centro tático agora processado não era uma organização, e que não tinha: 1) estatutos; 2) programa; 3) membros que pagavam cotas. Então que faziam eles: Encontravam-se! (Sintamos calafrios nas costas.) E encontrando-se davam a conhecer uns aos outros os seus pontos de vista! (Fiquemos paralisados de horror!) p319






No fim da guerra civil, e como sua consequência natural, abateu-se sobre a região do Volga um ano de fome como nunca se tinha conhecido. Como isso não adorna muito a coroa de glória dos vencedores desta guerra, falam sobre ela entre dentes e sem ir além de duas linhas. E no entanto essa fome chegou até ao canibalismo, até aos pais comerem os seus próprios filhos. Nunca uma fome assim tinha sido conhecida na Rússia, nem sequer no “Tempo dos Tumultos” (então como testemunham os historiadores, os cereais mantinham-se debaixo da neve durante vários anos, sem serem colhidos). Um só filme sobre essa fome poderia projetar uma luz nova sobre tudo o que vimos e tudo o que sabemos acerca da Revolução e da guerra civil. Mas não há nem filmes, nem romances, nem estudos estatísticos – é algo que se procura esquecer, que não embeleza. Além disso, a causa de qualquer fome, é costume fazê-la recair sobre os kulaks...

(...) Mas algum dia alguém falará daqueles fornecimentos de intermináveis vagões de víveres enviados durante meses, em aplicação ao tratado de paz de Brest-Litóvski, pela Rússia, privada de vozes de protesto, mesmo das regiões que a fome ia devastar, para a Alemanha do Kaiser, que travava no ocidente os últimos combates.

Da causa ao efeito a cadeia era curta: se os habitantes do Volga comiam os seus filhos era porque nós não tínhamos outra preocupação que não fosse a de dissolver a Assembleia Constituinte. p332






Nesta época ainda, num acesso de cólera, quando estavam elaborando o Código, Vladímir Ilitch, sem deixar perder a sua brilhante ideia, escrevia em 19 de maio:

“Camarada Dzerjinski! Quanto à questão da deportação de escritores e de professores que ajudam a contra-revolução, é necessário preparar isso o mais cuidadosamente possível. Sem preparação, cometeremos besteiras... É preciso organizar tudo isso de tal forma que esses ‘espiões militares’ sejam caçados permanente e sistematicamente e expulsos para o estrangeiro. Peço-lhe para mostrar isso secretamente, e sem reproduzi-lo, aos membros do Politburo”. p359





“Assim, com os esforços da atrelagem dos oito, foram alcançados todos os objetivos de processo:

1.   Todas as deficiências que existem no país, a fome, o frio, a falta de roupas, a desorganização e as mais rematadas tontices – tudo isso foi atribuído aos engenheiros-sabotadores;

2.   O povo ficou assustado com a iminente intervenção e disposto a novos sacrifícios;

3.   Os círculos de esquerda do Ocidente ficaram advertidos quanto às maquinações dos seus governos;

4.   A solidariedade dos engenheiros foi abalada, toda a intelectualidade, assustada e dividida. E para que não restassem dúvidas de que era este o objetivo do processo, uma vez mais ele foi proclamado com clareza por Ramzin:

‘Eu queria que, como resultado do atual processo do Partido Industrial, sobre o sombrio e vergonhoso passado de toda a intelectualidade... fosse traçada uma cruz para sempre’

No mesmo sentido se manifesta Larítchev: ‘Essa casta deve ser destruída...Não há nem pode haver lealdade nos meios da engenharia!’ E Ótchkin: ‘A intelectualidade é algo de pantanoso, ela não tem, como disse o acusador, espinha dorsal, carece absolutamente de vertebralidade... É incomensuravelmente mais elevado do olfato do proletariado’.

Por que, pois, fuzilar gente de tão boa vontade?...

Foi isso o que se escreveu durante décadas da história sobre a nossa intelliguêntsia – desde o anátema de 1920 (o leitor recorda-se: ‘não é o cérebro da nação, mas a merda da nação’, ‘a aliada dos generais negros’, ‘um agente a soldo do imperialismo’) até ao anátema de 1930.

É acaso de maravilhar que a palavra ‘intelliguêntsia’ se tenha firmado entre nós como um insulto?

Eis como são montados os processos judiciais públicos. O pensamento inquiridor stalinista alcançou, finalmente, o seu ideal. (Ora, ora... ele causa inveja aos desastrados Hitler e Goebbels, que se cobriram de vergonha com o incêndio do Reichstag...)” p384-5






E não houve aplausos*

*Uma pequena nota consagrada à menina Zóia Vlássova, de oito anos.

Ela amava o pai extremosamente. Não pôde voltar a estudar na escola (zombavam dela dizendo: “O seu pai é um sabotador!” Ela brigava com as outras: “O meu pai é bom!”). Depois do julgamento, viveu só um ano (até então jamais estivera doente). Nesse ano, nem uma só vez riu, andando sempre cabisbaixa, e as velhas auguravam: “Ela olha para a terra, depressa morrerá”. E morreu de meningite, gritando antes de morrer, constantemente: “Onde está o meu pai? Tragam o meu pai!”

Quando calculamos os milhões de homens que pereceram nos campos, esquecemo-nos de multiplica-los por dois ou por três... p414






A julgar pelos documentos oficiais, a pena de morte foi restabelecida, em todos os seus direitos, a partir de junho de 1918 – não propriamente “restabelecida”, mas instituída para inaugurar uma nova era das execuções. Se considerarmos que Látsis não diminuiu os números, carecendo apenas de informações completas, e que os tribunais revolucionários fizeram pelo menos um trabalho judicial equivalente ao extrajudicial da Tcheká, chegaremos à conclusão de que em vinte províncias da Rússia central, num período de dezesseis meses (de junho de 1919 a outubro de 1919), foram fuziladas mais de dezesseis mil pessoas, ou seja, mais de mil por mês.p418

*Já que estamos em comparações, vejamos mais uma:

nos oitenta anos do auge da Inquisição (1420-1498)

foram em toda a Espanha condenadas à fogueira dez mil pessoas,

isto é, cerca de dez pessoas por mês.

 





Mais horrorosa nos parece ainda a moda de ambas as partes beligerantes, e mais tarde dos vencedores, do afundamento de barcaças com centenas de pessoas, sem serem contadas nem recenseadas, e até nem inscritas em listas. (Tal foi o caso da morte de oficiais de Marinha no golfo, da Finlândia, no mar Branco, no mar Cáspio e no mar Negro, e ainda dos reféns de 1920, no lago Baikal.)p419






E que criminosos eram esses? De onde tinham saído tantos conspiradores e agitadores? Estavam ali, por exemplo, seis kolkhozianos dos arredores de Tsarkóie-Celo, os quais eram acusados do seguinte: depois das ceifas do kolkhoz (feitas com as suas próprias mãos!), eles passaram de novo a crivo os campos e recolheram as espigas que tinha ficado entre os torrões para das às suas vacas. Estes seis mujiques não foram perdoados pelo Comitê Executivo Central, e a sentença foi executada!p420





Se Stálin nunca tivesse mandado matar ninguém mais, só por esses seis mujiques de Tsarkóie-Celo eu já o consideraria digno de ser esquartejado! P421






Até que grau serão inverossímeis estas cifras? Considerando que os fuzilamentos foram realizados não durante dois anos, mas sim em um ano e meio, obtemos (para o artigo 58) a média por mês de vinte e oito mil fuzilados. Isso em toda a União. Mas quantos locais de fuzilamento havia? Será muito modesto considerar que eram apenas uma centena e meia. (Havia mais, naturalmente. Só em Pskov tinham sido adaptadas muitas igrejas e antigas celas de eremitas para locais de tortura e fuzilamento da NKVD. Ainda em 1953 nessas igrejas não eram permitida a entrada de turistas: “depósitos de arquivos”; belos “arquivos”, em que não tinham limpado as teias de aranha em dez anos! Antes dos trabalhos de restauração, foram daí levados montes de ossos em caminhões.) Pode calcular-se que num lugar, e num só dias, levavam ao fuzilamento seis pessoas. Acaso isso é algo fantástico? Isto está até subestimado! (Segundo outras fontes, até 1º de janeiro de 1939, tinham-se fuzilado um milhão e setecentas mil pessoas.)p422







O nosso destino de ir parar à cela dos condenados não se decide por aquilo que fizemos ou não fizemos – decide-se pelas voltas da grande roda, de poderosas circunstâncias exteriores. Por exemplo, Leningrado encontra-se bloqueada. Que deve pensar o seu dirigente supremo, Camarada Jdánov, se nos processos do GB (segurança do Estado) de Leningrado, nesses meses duros, não está prevista nenhuma pena de morte? Que os “Órgãos” não atuam, não é assim? Deve haver, para serem descobertas, importantes conspirações clandestinas dirigidas pelos alemães do exterior, não é verdade? Por que é que sob Stálin, em 1919, essas conspirações foram descobertas e sob Jdánov, em 1942, elas não vêm à luz? Dito e feito: descobrem-se várias conspirações ramificadas! Enquanto você dorme no seu quarto gelado de Leningrado, uma garra negra desce sobre você. E aqui nada depende de você mesmo. Acontece que certo general Ignátovski tem uma janela que dá para o rio Nievá e tirou um lenço branco para se assoar: é um sinal! Além disso, Ignátovski, que é engenheiro, gosta de falar com os marinheiros sobre questões técnicas. Há que cortar o mal pela raiz! Ignátovski é preso. Chegou o momento de ajustas contas! Ele é obrigado a dar o nome dos quarenta membros da sua organização. Dá-os. Se você é lanterninha do Teatro Aleksandra, as possibilidades de ser citado não são grandes, mas se é professor de um instituto tecnológico, então está na lista (outra vez esta maldita intelliguêntsia!). Nada depende de você. E por figurar nessa lista todos são fuzilados. p424






Em casa de um conhecido meu, antigo preso político, há o seguinte costume: em 5 de março, dia da morte do Assassino Principal, colocam-se sobre a mesa as fotografias dos fuzilados e mortos no campo de concentração: algumas dezenas, as que se conseguiu reunir. E durante todo o dia reina no apartamento um ambiente solene, meio de igreja, meio de museu. Executa-se música fúnebre, vêm os amigos, olham as fotografias, guardam silencio, escuta, fala a meia voz, e saem sem despedir-se.

Se se fizesse assim em toda a parte... Guardaríamos nem que fosse uma pequena cicatriz dessas mortes.

A fim de que, de todas as maneiras, não tivessem morrido em vão! p425






Eu também tenho umas quantas fotografias ocasionais. Olhem ao menos para estas.

Viktor Petróvitch Pokróvski – fuzilado em Moscou, em 1918.

Aleksandr Chtrobínder, estudante – fuzilado em Petrogrado, em 1918.

Vassíli Ivánovitch Anítchkov fuzilado na Lubianka, em 1927.

Aleksandr Andrêievitch Sviétchin – professor do Estado Maior – fuzilado em 1935.

Mikhail Aleksándrovitch Retormátski, agrônomo, fuzilado em Oriol, em 1938.

Elizavieta Evguênievna Anítchkova – fuzilada num campo de trabalho no Ienissei, em 1942. p426






É através dos indultados e dos artistas que temos um quadro aproximado da cela da morte. Sabemos, por exemplo, que durante a noite eles não dormem, mas esperam. Só pela manhã se tranquilizam. p427






Narókov (martchenko) [sic], no romance Falsas Grandezas (Edições Tchékhov), onde é dominado pela preocupação de escrever como Dostoiévski, de tocar e de comover mais ainda do que Dostoiévski, descreve no entanto muito bem a cela do condenado e a própria cena do fuzilamento, na minha opinião. Não é possível comprová-lo, mas em certa medida acredita-se.

Os pressentimentos de artistas mais antigos, por exemplo Leonid Andrêiev, transportam-nos inevitavelmente aos tempos de Krilov. Mas que escritor fantástico poderia imaginar, por exemplo, as celas da morte de 1937? Ele não deixaria de desfiar a meada psicológica: a maneira de esperar, de escutar... Quem poderia no entanto prever e descrever-nos estas sensações inesperadas dos condenados à morte?

1.   Eles sofrem de frio. Têm que dormir num chão de cimento, debaixo da janela, a uma temperatura de três graus negativos (Strakhóvich), e pode ser que morram enregelados antes do fuzilamento.

2.   Eles sofrem de falta de espaço e de calor asfixiante. Numa cela só para um, põem sete (é raro haver menos), dez, quinze ou mesmo vinte e oito condenados à morte (Strakhóvitch, Leningrado, 1942). E assim, esmagados, são mantidos semanas e meses! De forma que já não é um pesadelo falar dos sete enforcados! (Alusão à novela de Leonid Andrêiev, A história dos sete enforcados). Os homens já não pensam na execução, não temem o fuzilamento, mas pensam só em como estender as pernas, em como dar uma volta, em como absorver o ar.

Em 1937, quando nas várias prisões de Ivánovo (prisões interiores nº1, 2 e KPZ) se encontravam presas ao mesmo tempo quarenta mil pessoas, embora estivessem planejadas apenas para três ou quatro mil, só na prisão nº2 tinham sido amontoados presos com processo em instrução, condenados a campos de trabalhos, condenados à morte, condenados à morte indultados e ainda ladrões. E todos eles estiveram durante vários dias numa grande cela, de pé apoiados uns contra os outros, com tal estreiteza que não se poderia levantar nem baixar os braços, e aqueles que eram apertados conta as tarimbas podiam fraturar os joelhos. Isso passava-se no inverno, mas, para não se asfixiarem, os reclusos quebravam as vidraças das janelas. (Foi nesta cela que aguardou a morte, já depois de condenado, o velho bolchevique Alalíkin, membro do Partido Operário Social-Democrata Russo desde 1898, e que abandonou o Partido Bolchevique em 1917, depois das Teses de Abril)*

*Teses defendidas por Lênin em 17 de abril de 1917: recusa de combater na guerra, ruptura com o governo provisório, passagem do poder aos sovietes.

3.   Os condenados à mote sofrem de fome. Depois da sentença a espera é tão longa que a sua principal sensação passa a ser não a do medo do fuzilamento, mas a da tortura da fome: onde encontrar o que comer? Aleksandr Babitch, no ano de 1941, na cadeia de Krasnoiarsk, passou na sua cela de morte setenta e cinco dias! Já se tinha resignado completamente e aguardava o fuzilamento como o único e possível fim da sua vida desfeita. Mas acabara por inchar devido à fome – e foi então que lhe comutaram a pena para dez anos de prisão, tendo iniciado em tal estado a sua vida pelos campos de trabalho. Mas qual é o recorde de permanência na cela da morte? Quem o conhece? Vsievólod Petróvitch Golítsin parece ser o campeão (!). Passou lá cento e quarenta dias (em 1938). Mas acaso será este o recorde?... Uma glória da nossa ciência, o acadêmico N. I. Vavílov, esteve à espera do fuzilamento vários meses, se não um ano inteiro; depois, na sua qualidade de condenado à morte, foi evacuado para a prisão de Sarátov, onde permaneceu numa cela subterrânea, sem janelas; e quando no verão de 1942 foi indultado e o transferiram para a cela comum, não podia andar: à hora do passeio deviam leva-lo nos braços.

4.   Os condenado à morte sofrem por falta de assistência médica. Okhrimenko, durante a longa permanência na cela da morte (em 1938), adoeceu gravemente. Não o levaram ao hospital, e a médica não apareceu durante longo tempo. Quando ela finalmente chegou, não entrou na cela, mas através da porta com rede, sem o examinar nem nada lhe perguntar estendeu-lhe uns pós. Strakhóvitch sofria de hidropisia nas pernas, o que ele explicou ao guarda, e mandaram-lhe... uma dentista.

Quando o médico intervém, deverá ele curar o condenado à morte, ou seja, prolongar-lhe o tempo de espera da morte? Ou o humanismo do médico consistirá em insistir no fuzilamento quanto antes? Ainda outra cena de que Strakhóvitch foi testemunha: o médico entra e, ao falar com o guarda de plantão, aponta com o dedo para um condenado à morte: “Mas já é um defunto!... um defunto!” (Assim ele queria chamar a atenção para as distrofias dos condenados, insistindo em que não se pode deixar morrer assim lentamente as pessoas, sendo já mais que tempo de fuzilá-los) p427/428

 





 Às vezes, a meio da noite, as fechaduras rangem e os corações gelam: será para mim? Não, não é para mim! E o guarda abre a porta de madeira para dizer qualquer coisa absurda: “Recolham as coisas que estão no parapeito da janela!” Esse simples ato de abrir a porta pode ter tirado a todos os catorze (ali empilhados em uma cela de 5 por 1) um ano de vida; bastará talvez repetir uma meia centena de vezes essa operação para já não ser necessário gastar uma bala! Mas como todos lhes ficaram agradecidos, por ter terminado tudo bem: “Vamos já guarda-las, cidadão-chefe!” p433






Os calabouços eram o flagelo das prisões especiais. Podia-se ser enviado para lá por tossir (“cubra a cabeça com a manta, e então já pode tossir!”); por fazer barulho com o calçado (na prisão de Kazan tinham dado às mulheres botas masculinas número 44). Por outro lado, Guinzburg deduz justamente que a passagem pelo calabouço era determinada não pelos atos realizados mas por um gráfico: Todos tinham, por turnos, de passar por ali e de saber o que era isso. E nas disposições havia ainda este ponto de grande amplitude: “Em caso de indisciplina no calabouço, o chefe da prisão tem o direito de prolongar o período de permanência nele de até vinte dias”. E que “indisciplina” era essa?... Eis o que ocorreu com Kozíriev (a descrição dos calabouços e de muitos aspectos do regime apresentam tantas coincidências que se nota o selo de um regime único). Por andar pela cela castigaram-no com cinco dias de calabouço. No outono, o calabouço não era aquecido. Fazia muito frio. Deixavam-nos em roupa íntima e descalços. O soalho era de terra batida, com poeira (às vezes era de barro ou lama, e na prisão de Kazan coberto de água). Kozíriev tinha um mocho (Ghinzburg não tinha). Pensou imediatamente que ia morrer, que ia congelar. Mas gradualmente emergiu nele um misterioso calor interior, e isso o salvou. Aprendeu a dormir sentado no mocho; três vezes por dia davam-lhe uma caneca de água quente, de que parecia ficar embriagado. Na ração de trezentos gramas de pão um dos guardas introduziu lhe um torrão de açúcar, que não era permitido. Era através da entrega do racionamento e de uma ficha de luz que penetrava pelo labirinto da entrada que Kozíriev contava o tempo. Ao fim do quinto dia não o tiraram dali. Com o ouvido atento, ele escutou um murmúrio no corredor, falando de seis dias, ou de um sexto dia. Nisso consistia a provocação: esperavam que ele dissesse que os cinco dias tinha passado, que já era tempo de o tirarem dali e prolongar por indisciplina a estada no calabouço. Mas ele, submissamente calado, esperou um dia mais, e então deliberaram, como se nada tivesse sucedido. (talvez o chefe da prisão os experimentasse, um por um, aplicando o calabouço a todos aqueles que ainda não se tinham submetido.) Depois do calabouço a cela comum parecia um palácio, embora Kozíriev tivesse ficado surdo por meio ano e começasse a surgir-lhe abscessos na garganta. p460/461






E isso sucede porque se deixou passar o momento, senhores, camaradas e irmão! Para reagir, era preciso tê-lo feito quando Strujinski se imolou com fogo na cela de Viatka, e ainda antes disso, quando os declararam “do contra”.

Ora, você permitiu que lhe tirassem o sobretudo, que o seu casaco fosse apalpado e que fosse arrancada com um pedaço de tecido a nota de vinte rublos que lá tinha sido cosida, que a sua bolsa fosse despejada, e revistada, que tudo o que a sua esposa sentimental juntou para você depois da sentença, para a longa viagem, ficasse perdido, sendo-lhe devolvido apenas a bolsa com a escova de dentes...

É verdade que nem todos se submeteram assim nos anos 30 e 40, mas apenas noventa e nove por cento. Como pôde isto suceder? Homens! Oficiais! Soldados! Combatentes da frente! p479





Os gatunos, por sua vez, não passaram por tais interrogatórios. Foram interrogados quando muito duas vezes, tiveram um julgamento suave, uma sentença leve e até mesmo essa sentença não a cumprirão, serão liberados antes: ou os anistiam ou fogem. Ninguém privou os gatunos das encomendas legais, e durante instruções recebem abundantes pacotes dos camaradas de roubo que ficaram em liberdade. Não emagreceram, não se debilitaram nem um só dia e pelo cainho alimentaram-se à custa dos fraiers. (Fraier: aquele que não é ladrão, isto é, que não é um “Homem” – com letra maiúscula. Ou mais simplesmente: o resto da humanidade, quem não rouba. p480/1






Assim pomo-nos em marcha. Dormimos com os corpos entrelaçados, sob o trepidar das rodas, não sabendo que bosques ou estepes se verão amanhã através da janela. Da janela que há no corredor. Do beliche do meio, olhando através das grades do corredor, dos vidros e ainda de outras grades, podem distinguir-se vagamente as estações do caminho e um pedacinho do espaço que corre junto ao trem em marcha. Se as vidraças das janelas não estão recobertas pelo gelo, às vezes pode-se ler o nome da estação – uma qualquer, Avsiúnino ou Undol. Onde ficam essas estações?...Ninguém no compartimento sabe. Às vezes, pelo sol, pode-se descobrir se nos levam para o norte ou para o oriente. p488






Por que é que se deve suportar então isso da prisão? Você perdeu tempo, não comeu logo o seu toucinho, não repartiu com os amigos o açúcar e o tabaco, e agora os gatunos remexerão na sua bolsa, para corrigir o seu erro moral. Dando a você, em troca das suas elegantes botas, uns velhíssimos sapatos, e uma peça de roupa toda manchada em troca da sua camiseta de lã. Eles não guardam essas coisas para si por longo tempo: as botas, eles vão ganha-las e perde-las trinta e seis vezes jogando cartas; e a sua camiseta da lã, vão trocá-la no dia seguinte por um litro de vodca e um pedaço de linguiça. Ao cabo de um dia, eles já não terão nada, como você. É o segundo princípio da termodinâmica: os níveis devem igualar-se, igualar-se...

Não tenham nada! Não possuam nada! – foi o que nos ensinaram Buda e Cristo, os estóicos e os cínicos. Por que é que nós, avarentos, não escutamos esta simples prática? Por que é que não compreendemos que com os bens perdemos a nossa alma?

Deixe, eventualmente, que o arenque se aqueça no seu bolso até o campo de trânsito, para não ter que pedir água. Mas se lhe deram açúcar e pão de uma só vez, para dois dias, coma tudo de uma assentada. Então ninguém vai roubá-lo. E você não terá preocupações. Já está livre como um pássaro do céu!

Tenha só o que puder levar sempre com você: conhecimento de línguas, países e gentes. Que a sua memória seja a sua mochila. Use a memória! Retenha tudo nela! Somente essas sementes amargas poderão algum dia frutificar.

Olhe, há pessoas à sua volta. Talvez você venha a se recordar de uma delas durante toda a vida, e venha a morder os dedos por não a ter ouvido. Fale menos, escute mais. De uma a outra ilha do arquipélago estende-se os delicados fios das vidas humanas. Eles entrelaçam-se, cruzam-se por uma noite, na penumbra de um destes trepidantes vagões, e depois de novo se separam eternamente – mas incline o ouvido para o seu murmúrio baixinho, e também para o monocórdio trepidar do vagão. Tudo isso é ruído do fuso da vida que gira. p490/91






O coronel reformado Lúnin, alto funcionário da Osoaviakhim, relatava numa cela da prisão de Butirki, em 1946, como em oito de março, num “tintureiro” moscovita, na sua presença e no espaço de tempo decorrido no percurso entre o tribunal da cidade e a prisão de Taganka, os gatunos violaram uma moça, um após outro (perante a passividade silenciosa dos outros ocupantes da viatura). Essa moça, na manhã desse mesmo dia, vestindo a sua melhor roupa, tinha ido livremente ao tribunal comum (devia ser julgada por ter abandonado o trabalho sem licença, acusação infame do seu chefe como vingança por ela se recusar a viver com ele). Meia hora antes a moça tinha sido condenada a cinco anos, segundo o ukaze. Puseram-na nesse “tintureiro” e eis que, em pleno dia, em algum ponto do trajeto de Sadovoie Koltso (“Bebam champanha soviético!”), a converteram numa prostituta dos campos de concentração. Quem foi o verdadeiro responsável? Os gatunos? Os carcereiros? Ou o chefe dela?

A delicadeza da gatunagem! Roubaram ali mesmo a pobre moça: tiraram-lhe os seus melhores sapatos, com os quais ela queria impressionar o tribunal, e a blusa, que foi entregue à escolta, tendo essa mandado para o “tintureiro” para ir comprar vodca, que foi distribuída. E assim os gatunos beberam à custa da moça. p503






Os portos do arquipélago – (...) Raro é o zek que não esteve em três ou cindo campos de trânsito. Muitos podem guardar memória de uma dezena, mas os filhos do gulag contam-nos sem dificuldade até meia centena. E só se confunde em sua memória aquilo em que todos eles se parecem: a escolta analfabeta; a inútil chamada segundo a ordem, ou melhor, a desordem, das listas; a longa espera sob o sol escaldante ou sob a gélida chuva de outono; a revista prolongada de corpo despido; o corte de cabelo com um aparelho sujo; os banheiros malcheirosos e escorregadios; as fedorentas latrinas; o cheiro de mofo dos corredores estreitos e sem ar; as celas quase sempre escuras e úmidas; o calor da carne humana sempre a nosso lado, no chão ou nos beliches; as mesas-de-cabeceira feitas com tábuas mal pregadas; o pão molhado, quase líquido; a sopa que parece cozida com forragem.

Quem tem boa memória para pormenores e é capaz de matizar as recordações, diferenciando-as uma das outras, não necessita agora de viajar ao longo do país: toda a geografia se resume para ele nas viagens pelos campos de trânsito. Novos sibirsk? Conheço bem. Estive lá: umas barracas muito sólidas, feitas de grossos toros. Irkutsk? Foi aí que taparam várias vezes as janelas com tijolos. Vê-se ainda como elas eram no tempo do czar, distinguindo-se cada tipo de remendo e os buracos que deixaram para a passagem de ar. Vologda? Sim, é um edifício antigo, com torres. As latrinas ficam uma por cima da outra, os forros de madeira estão podres, pingando dos superiores para os inferiores. Usman? Pois sim! Um cárcere fedorento e cheio de piolhos, uma construção antiga com abóbadas. E junta-se aí tanta gente que quando as pessoas começam a sair para reintegrarem as levas não se acredita que todos ali coubessem. A fila ocupa meia cidade. P506/7






 

E isso sucede porque se deixou passar o momento,

senhores, camaradas e irmão!

Para reagir, era preciso tê-lo feito

quando Strujinski se imolou com fogo na cela de Viatka,

e ainda antes disso,

quando os declararam “do contra”.

 




Não ofenda os conhecedores, não lhes diga que esteve em cidades sem prisões de trânsito. Eles demonstram-lhe com rigor que essas cidades não existem, e terão razão. Salsk? Os que estão de passagem são fechados nas celas de prisão preventiva, junto àqueles que estão submetidos a uma investigação. E em cada capital de distrito há uma prisão de trânsito?  Sol-Ilietsk também temos uma. E em Ribinsk? Que outro nome dar a prisão número 2, no velho mosteiro? Oh! Um mosteiro tranquilo, com os pátios empedrados, desertos, com as antigas lajes cobertas de musgo, e com bacias de madeira limpinhas no banheiro. Em Tchita? É a prisão número 1. Em Nauchiki? Lá não há uma prisão, mas sim um campo de trânsito, o que é a mesma coisa. Em Torjok? Na montanha há também uma, noutro mosteiro.

É preciso compreender, amigo, que não pode haver uma cidade sem prisão de trânsito, na verdade, os tribunais trabalham em toda a parte. E como conduzir os prisioneiros ao campo? Pelo ar?

Naturalmente, nenhuma prisão de trânsito é igual a outra. Mas qual é melhor, e qual pior – é impossível dizê-lo. Quando se juntam três ou quatro zeks, cada um obrigatoriamente elogia a “sua”.

Vejamos: Ivánovo não é uma prisão de trânsito assim tão célebre. Mas pergunte-se a quem lá esteve no inverno de 1937-38. A prisão não era aquecida e lá não se gelava, ao contrário: nos beliches superiores os presos deitavam-se despidos, Tinham-se quebrado as vidraças das janelas para não se asfixiar. Na cela 21, em vez das vinte pessoas previstas havia trezentas e vinte e três? Por sob as tarimbas inferiores havia água e puseram-se tábuas por cima, deitando-se os presos nas tábuas. Das vidraças partidas soprava um ar gélido. Numa palavra, debaixo das tarimbas era noite polar: não havia luz e toda a claridade era ofuscada pelos que jaziam nos beliches e pelos que se mantinham de pé entre esses beliches, Não havia passagem para ir ao balde-latrina, sendo necessário fazer uma escalada pela borda dos beliches. A comida não era distribuída segundo o número de presos, individualmente, mas sim por dezenas; se um dos que faziam parte dessa dezena morria, os outros colocavam-no debaixo das tarimbas e lá o mantinham até que cheirasse mal. Entrementes recebiam a sua ração de comida. E tudo isso seria ainda possível de suportar, mas os guardas excitavam-se como se tivessem sido regados com aguarrás, transferindo os presos sem cessar. Mal uma pessoa tinha acabado de instalar-se e já lhes gritavam: “De pé! Mudar para outra cela!” e novamente era preciso conseguir lugar. Por que essa superlotação? Durante três meses não tinham levado os prisioneiros ao banho. Os piolhos proliferavam e devido aos piolhos apareceram chagas nas pernas, tendo-se declarado o tifo. Por causa do tifo foi imposta uma quarentena e durante meses não houve transferências.

- Foi assim, rapazes! E não porque se tratasse de Ivánovo, mas sim por ser naquele ano. Em 1937-38 não eram só os zeks, mas também as pedras das prisões de trânsito que gemiam. A prisão de Irkutsk não era sequer uma prisão de trânsito especial, mas, em 1938, nem os médicos se atreviam a dar uma olhadela às celas. Limitavam-se a passar pelo corredor, e o guarda gritava à porta: “Aqueles que estão sem sentidos que saiam!”

- Em 1937, rapazes, toda essa gente se arrastava através da Sibéria em direção de Kolimá e tropeçava no mar de Okhotsk e em Vladivostok. Os navios só conseguiam transportar até Kolimá trinta mil presos por mês – e de Moscou continuavam a enviá-los, sem levar isso em consideração. Bom, juntaram-se cem mil, compreendem?

-E quem os contou?

-Aqueles que acharam necessário conta-los.

- Se se trata da prisão de trânsito de Vladivostok, lá, em fevereiro de 1937, havia nada menos de quarenta mil.

- Sim, durante meses eles atolaram-se ali. Os percevejos corriam pelos beliches como uma praga de gafanhotos! Quanto à água, davam-nos meio copo por dia: ela faltava e não havia quem a fosse buscar! Havia uma zona inteira de coreanos: todos pereceram de disenteria, todos! Da nossa zona cada manhã retiravam uns cem homens. Para construir uma morgue, engatavam zeks aos carros e assim transportavam pedras. Hoje você carrega, amanhã será carregado para lá, e no outono declarou-se também o tifo. Fizemos como em outros lugares: não entregávamos os mortos enquanto não cheiravam mal. Recebíamos a ração deles. Não havia medicamentos. Penetrávamos na zona: deem-nos remédios! E das torres de atalaia atiraram uma descarga. Mais tarde reuniram todos os que tinham sido atingidos pelo tifo numa barraca isolada. Não conseguiam levá-los para lá a tempo, mas uma vez lá eram poucos os que saíam. Em cada barraca os beliches eram de dois andares, e quando no segundo andar os doentes, atacados pela febre, não podiam descer para fazer as suas necessidades, faziam-nas sobre os de baixo. Havia ali mil e quinhentos doentes e os enfermeiros eram verdadeiros ladrões. Aos mortos eles arrancavam os dentes de ouro. E chegaram a fazer o mesmo aos vivos. p507/8/9






Gostaria também de intervir e de falar sobre a Krásnaia Présnia, em agosto de 1945, no Verão da Vitória, mas sinto certa vergonha...

...Numa cela algo maior do que um quarto médio de habitação havia cem homens, prensados, não havendo espaço onde pôr os pés. E as duas pequenas janelas estavam tapadas com “mordaças” recobertas de chapas de metal, isto no lado sul, e com isso não só impediam o movimento do ar, como também aqueciam com o sol e espalhavam o calor na cela. p510






A fantasia dos literatos é pobre, perante a vida dos nativos do arquipélago. Quando querem escrever sobre as prisões, a coisa mais degradante e deprimente que criticam é sempre o balde que serve de latrina nas celas. O balde-latrina. Ele tornou-se na literatura o símbolo da prisão, o símbolo da humilhação, do fedor. Que leviandade! Acaso o balde-latrina constitui um mal para o preso? Pelo contrário, é a mais caritativa das invenções dos carcereiros. Todo o horror começa no preciso momento em que esse balde da cela deixa de existir.

No ano de 1937 em algumas cadeias da Sibéria não havia baldes-latrinas. Eles eram em número insuficiente! Não tinham fabricado com antecipação baldes que chegassem. A indústria siberiana não satisfazia a ampla procura. E aconteceu que nos armazéns não havia baldes para as novas celas. Nas celas antigas os baldes que existiam eram tão pequenos e primitivos que agora, sensatamente, foi preciso retirá-los. Dadas as novas vagas de presos, eles já não prestavam para nada. Assim, se a prisão de Minussinsk tinha sido construída há muito para quinhentas pessoas (Vladímir Ilitch não chegou a conhecê-la, pois achou o caminho do exílio em liberdade), agora punham lá dez mil. O que significa que cada balde-latrina deveria ter aumentado vinte vezes de tamanho! Mas não tinha...

Nossas canetas russas escrevem com traços grossos. Temos sofrido enormemente e quase nada disso foi escrito, Mas para os autores ocidentais, com a sua preocupação de examinar à lupa as células do organismo, agitando a ampola farmacêutica sob a luz dos projetores, isto é uma verdadeira epopeia, que permitirá acrescentar dez tomos à obra Em busca do Tempo perdido, descrevendo o pânico do espírito humano quando numa cela há uma superlotação, vinte vezes superior à prevista, e não há baldes, só sendo permitido ir à latrina uma vez por dia! Naturalmente muitas formas de solução são deles desconhecidas. Eles não encontrariam saída urinando num capuz de lona impermeável. E não compreenderiam sequer o conselho do vizinho para urinar dentro da bota! E no entanto trata-se de um conselho cheio de sabedoria e de grande experiências, que não implica de modo algum de que se estrague a bota, nem se rebaixe esta ao nível de um balde. Isso exige simplesmente que se descalce a bota, que se ponha a parte de cima para baixo, que se volte do avesso o cano e que se dobre este para fora. Assim se forma a desejada cavidade, formando um canal arredondado! Mas, em comparação, com quantas sinuosidades psicológicas enriqueceriam os autores ocidentais a sua literatura (sem risco algum de repetir as banalidades dos célebres mestres) se conhecessem apenas o regulamente da prisão de Minussinsk: para receber a comida entregava-se uma tigela para quatro, tendo-se direito a uma caneca de água potável por dia e por pessoa (havia canecas). Mas eis que um dos quatro acabava de utilizar a tigela comum para aliviar a pressão da bexiga e antes da comida se negavam a entregar a sua reserva de água para lavar essa tigela. Que conflito! Que choque entre quatro caracteres! Que nuanças! p513/4






Desde os primeiros passos na prisão de trânsito se poderá observar que não são os vigilantes nem os graduados que têm poder sobre os presos, pois se atêm a uma certa lei escrita. Aqui se está sob o domínio dos “dissimulados*” da prisão de trânsito.

*Tipo de presos comuns, com certos privilégios, subordinados aos chefes de equipe (outros presos), e que se infiltram entre os prisioneiros políticos para lhes fazerem trapaças trocando, vendendo objetos pessoais, etc. p515






“Não são propriamente gatunos!”, explicam-nos os entendidos que há entre nós. “São cadelas que vieram prestar serviço. São os inimigos dos ladrões honrados. Estes estão presos nas celas”. Mas nos nossos cérebros de patinhos isso penetra com dificuldade. Todos têm os mesmos modos, as mesmas tatuagens. p.516






Talvez uns sejam inimigos dos outros, mas de nós é que eles não são amigos... p.516






Inexperientes, sem olhar em torno, sem calcular, arrastamo-nos pelo solo asfaltado, debaixo das tarimbas, pois ali estaremos mais cômodos. As tarimbas são baixas e os homens robustos, para entrar lá, têm de deitar-se no chão, rastejando. Conseguiram-no. Aqui estaremos estendidos calmamente, e calmamente conversaremos. Mas não! Na baixa penumbra, com um sussurro silêncios, de gatas, como grandes ratazanas, arrastam-se de todos os lados, com cautela, os menores: são ainda garotos, alguns mesmo de doze anos, mas o Código admite-os também, eles já passaram pelo tribunal por roubo e continuam agora aqui a aprendizagem junto com os ladrões. Lançaram-nos contra nós! Eles rastejam, de todos os lados, em direção nós, e uma dezena de mãos vão-nos tirando e arrancando o que temos debaixo dos nossos corpos. E tudo isso em silêncio, apenas com guinchos sinistros. Estamos metidos numa armadilha: não podemos nem levantar-nos, nem mexer-nos. Um minuto depois de nos terem arrancado a bolsa com toucinho, açúcar e pão, tinham-se já sumido, e, nós, sempre deitados. Abandonamos, sem lutar, os alimentos, e agora podíamos ao menos permanecer na cama, mas isso já é impossível. Mexendo comicamente as pernas, pomo-nos de gatas, com o traseiro contra as tarimbas. p518/19






E o vaivém continua! Trazem-nos, levam-nos, um por um ou em grupos, enviam-nos sabe-se lá para onde, em levas. Tudo tem um ar tão sério e tão inteligentemente planejado, que não se pode acreditar que nisso exista tanto absurdo. p525






Se a natureza humana evolui, não é com muito mais rapidez do que o aspecto geológico da Terra. E esse sentimento de curiosidade, de deleite e prazer, que há vinte e cinco séculos dominava os escravagistas no mercado de escravos, dominava também naturalmente os funcionários do Gulag, na prisão de Usman, em 1947, quando duas dezenas de homens com o uniforme do Ministério da Segurança do Estado se sentaram por trás de algumas mesas, cobertas com lençóis (isto para das ao ato maior dignidade, de outra forma seria incômodo), e todas as mulheres presas tiveram que se despir no boxe vizinho, e passar nuas e descalças diante deles, dar a volta, parar e responder às perguntas. “Baixe os braços!” – indicavam eles àquelas que adotavam, por pudor, poses de estátuas antigas (pois os oficiais deviam escolher conscienciosamente as suas concubinas, para si e para os que os cercavam). p532/33






Kargopollag

Um dia, puseram na nossa cela de Présnia um detido de designação especial, e ele dormiu ao meu lado durante duas noites. Designação especial significava que na Administração Central tinham escrito um borderô que o acompanhava de campo em campo, e onde se dizia que ele era técnico de construção e só nessa condição poderia ser utilizada em cada novo lugar. O prisioneiro de designação especial viaja num stolípin normal, instala-se em celas comuns da prisão de trânsito, mas a sua alma não estremece: ele está defendido pelo borderô e não o enviam para cortar árvores num bosque.

Uma expressão cruel e decidida, tal era a marca mais visível no rosto deste recluso que já tinha cumprido grande parte da pena a que fora condenado. (Eu não sabia ainda que essa expressão era o estigma nacional dos ilhéus do Gulag. As pessoas com expressão suave e condescendente morrem rapidamente nas ilhas.) Ele observava as nossas primeiras discussões com um sorriso igual ao que se tem para os cachorrinhos de duas semanas.

O que é que nos esperava no campo? Compadecendo-se de nós, ele ensinava:

         - Desde os primeiros passos no campo cada um procurará enganá-los e roubá-los. Não confiem em ninguém, exceto em vocês mesmos! Olhem em volta e vejam se alguém se dispõe a mordê-los. Há oito anos atrás, quando cheguei ao Kargopollag, era tão ingênuo como vocês. Descarregaram-nos do trem e a escolta preparava-se para conduzir-nos: eram dez quilômetros até ao campo, por um caminho coberto de neve profunda e movediça. Cegaram três trenós. Um homem corpulento, que não foi impedido pela escolta, comunicou: “Irmãos, ponham aí as coisas, nós as levaremos!” E nós nos lembramos: tínhamos lido na literatura que as coisas dos presos eram levadas em carroças. Não era assim tão inumano, o campo. Eles eram solícitos. Lá colocamos as coisas. Os trenós partiram. Foi tudo. Nunca mais as vimos. Nem sequer as embalagens vazias.

         - Mas como pode ser isso? Não há uma lei?

         - Não façam perguntas idiotas. Há uma lei. A lei da selva. Mas justiça nunca houve no Gulag, nem haverá. Este caso de Kargopollag é simplesmente um símbolo do Gulag. Depois vocês se acostumam: no campo ninguém faz nada em vão, ninguém faz nada por bondade. É necessário pagar por tudo. Se alguém propõe alguma coisa desinteressadamente, é preciso saber que se trata de algum truque, de alguma provocação. Mas o mais importante é evitar os trabalhos gerais! Evitem-nos desde o primeiro dia! Se no primeiro dia caírem nos trabalhos gerais, estarão perdidos para sempre.

         - Trabalhos gerais?

         - Os trabalhos gerais são os trabalhos essenciais, os trabalhos que estão na base da vida de um campo. Deles participam oitenta por cento dos presos. E todos eles perecem. Todos. E trazem outros em sua substituição, ainda para os trabalhos gerais. Aí vocês despendem as últimas forças. E estarão sempre famintos. E sempre molhados. E sem botas. E roubados no peso. E roubados nas medidas. E postos nas piores barracas. Sem qualquer tratamento médico. No campo os únicos que sobrevivem são aqueles que não participam dos trabalhos gerais! Desde o primeiro dia     .

         A qualquer preço!

A qualquer preço?

Em Krásnaia Présnia eu assimilei e aceitei esses conselhos, em nada exagerados, do impiedoso prisioneiro de designação especial, esquecendo-me apenas de lhe perguntar: e qual é a medida desse preço? Qual é o seu limite? p533/34






Os interesses do Estado e os interesses do indivíduo coincidem, como sempre, também aqui. É também vantajoso para o Estado enviar os presos para o campo por um itinerário direto, sem sobrecarregar as ruas das cidades, os transportes rodoviários e o pessoal dos centros de trânsito. Há muito que isso foi compreendido e assimilado perfeitamente no Gulag: caravanas de trens vermelhos (vagões para gado pintados de vermelho), caravanas de barcaças e, lá onde não há ferrovias nem água, caravanas de peões (não se permite que os reclusos utilizem cavalos nem camelos). p535






Não é qualquer vagão vermelho que pode transportar imediatamente reclusos. Primeiro, deve ser preparado para isso...

Só depois se pode escrever nos vagões, com giz, obliquamente: “maquinaria especial” ou “gênero deteriorável”. (No Sétimo vagão, E. Guinzburg descreveu muito bem o transporte nos vagões vermelhos, dispensando-nos, agora, em grande parte, de mais pormenores.).

Uma vez terminada a preparação do trem vem a complexa e autêntica operação marcial de embarque dos presos nos vagões. Nela há duas preocupações importantes e obrigatórias:

- ocultar do povo o embarque;

- aterrorizar os presos. p536






Ocultar o embarque aos habitantes é necessário porque no trem enfiam de uma só vez cerca de mil pessoas (vinte e cinco vagões, pelo menos; não é como um pequeno grupo que se põe num stolípin, coisa que se pode fazer à vista das pessoas). Naturalmente toda a gente sabe que todos os dias e a todas as horas são efetuadas detenções, mas ninguém deve horrorizar-se com a visão de tanta gente detida ao mesmo tempo. p537






Estas cenas, indignas dos nossos dias, só revelam uma inábil organização dos embarques nos trens. Constatados os erros, uma certa noite, o trem é rodeado por uma matilha de cães-pastores que ladram e uivam. p537






         Os feixes luminosos hostis dos fantásticos projetores iluminam o chão: eles são parte importante da cena teatral de intimidação dos presos, paralelamente às ameaças violentas, às coronhadas aos que se atrasam, às vozes de comando de: “Sente-se no chão!” (por vezes, como nessa mesma praça da estação de Oriol: “Ajoelhe-se!”, e, como novos peregrinos, o milhar põe-se de joelhos); simultaneamente a essa corrida para o vagão, completamente desnecessária mas muito importante para atemorizar, e ao furioso ladrar dos cães, são apontados canos (das espingardas ou metralhadoras, conforme a época). Objetivo essencial: deve ser desfeita , aniquilada, a força de vontade do preso, para que os seus pensamentos não o levem a pensar numa fuga, para que durante muito tempo não compreenda a “vantagem” da sua nova situação: passagem de uma cadeia de pedra para um vagão de tábuas delgadas. p538






Os transportes a pé têm sua própria técnica, que se desenvolveu nos lugares onde são frequentemente empregados. Suponhamos uma caravana sendo conduzia pelos atalhos da taiga, de Kniaj-Pogost a Veslianoa: de súbito cai ao solo um prisioneiro e não pode continuar. O que fazer? Pensem bem. Deter a marcha da coluna inteira? Também não se pode deixar uma sentinela ao lado de cada retardatário ou de cada um que desmaia. Os soldados escasseiam, e os presos não. De modo que... o soldado se atrasa um pouco, e em seguida se reúne à coluna, desta vez sozinho.

Os transportes a pé entre karabás e Spassk se converteram em uma longa rotina. Deviam cobrir somente uns trinta e cinco ou quarenta quilômetros, mas tinham que fazê-lo num só dia, com mil homens ao mesmo tempo, muitos deles debilitados. Nesse caso, é de prever que muitos cairão pelo caminho, indiferente à ameaça de morte. Disparar contra eles? Não temem a morte, mas talvez temam o porrete, o incansável porrete que batem sem parar... Pois bem, já se levantam! Nunca falha, está demonstrado. Por isso, a coluna de presos tem uma escolta de soldados com metralhadoras, que se mantém a uma distância de cinquenta metros, como também outra fila interna de soldados, sem fuzil, mas munidos de porrete. Os retardatários apanham (como havia previsto o Camarada Stálin); chovem porretadas, eles perdem as forças mas continuam andando e, milagrosamente, chegam ao seu destino. Ignoram que se trata da prova do porrete, e aqueles que, apesar dos golpes, não se levanta, são recolhidos pelas carretas que acompanham a certa distância. É um exemplo de organização! p553






Fechem os olhos, amigo leitor. Ouve o ranger das rodas? São os stolípin que passam. São os trens vermelhos que passam. A cada minuto do dia e da noite. A cada dia do ano. E esta água que marulha? São os barcos de detentos que vagam. E os motores dos “tintureiros”, observem como roncam. Desembarca-se, embarca-se, translada-se sem cessar. E este rumor? As celas superlotadas das prisões de trânsito. E estes gritos? Os prantos das pessoas roubadas, violentadas, espancadas.

Passamos em revista todos os modos de transporte e concluímos que todos são péssimos. Fazemos a ronda pelas prisões de trânsito, sem descobrir nenhuma boa. E a última esperança do homem, de que as coisas ficarão mais suaves e de que no campo será melhor, mesmo essa esperança resulta vã.

No campo, será pior. p554






Você emerge para a vida livre, perambula pela sala de espera, examina com olhar ausente os avisos que já não podem prejudicá-lo. Depois, senta-se em um velho sofá para viajantes, ouve estranhas e fúteis conversas: um marido espancou sua mulher, ou então a abandonou; uma sogra, quem sabe por quê, se desentendeu com sua nora; os vizinhos desperdiçaram eletricidade e, para completar, não limparam os pés. Alguém se atravessou no caminho do outro, e alguém mais prometeu a quem quer que seja um bom emprego, mas noutra cidade. E como fazer para suportar tantas besteiras? Isso não é uma insignificância? Enquanto você ouve tudo isso, sente um súbito calafrio causado pela resignação: percebe, com clareza, a verdadeira medida de todas as coisas no mundo circundante! A medida de todas as fraquezas e paixões! E essa percepção é verdade aos pecadores ao seu redor. Somente você, o incorpóreo, vive realmente, de verdade; os demais, esses infelizes, creem estar vivos mas se equivocam.

O abismo entre nós é intransponível! Impossível exorta-los ou acusa-los, toma-los pelos ombros e sacudi-los: você é espírito, um fantasma, e eles, corpos materiais.

Como fazê-los compreender (por uma iluminação? Por uma aparição? Em sonho?): Irmãos! Homens! Para que a vida lhes foi dada? No meio de uma noite escura, abrem-se as portas das câmaras da morte e seres humanos de almas grandiosas se encaminham para o fuzilamento. Nesse mesmo instante, a essa mesma hora, tais criaturas viajam por todas as estradas de ferro do país; depois de engolir um arenque, passam a língua pelos lábios ressequidos, sonham com o prazer de estirar as pernas, de ficar tranquilos após ter feito suas necessidades. Em Orotukan, a terra derrete só até um metro de profundidade, e apenas no verão; só então é possível enterrar ali os despojos dos que morreram durante o inverno. Mas vocês têm sobre suas cabeças o céu azul e, sob o cálido sol, o direito de decidir seu próprio destino, beber água, sentar esticando as pernas, viajar para onde quiserem. Que história é essa de sapatos sujos, e qual a importância da sogra? Querem que lhe revele agora o segredo mais essencial da vida? Não persiga o enganoso, nem as posses, nem os títulos: tudo isso se paga à custa dos nervos, década após década, e numa só noite pode ser confiscado. Vivam com serena superioridade perante a vida... Não temam a desdita nem anseiem pela felicidade, pois ambas as atitudes vêm a ser o mesmo. A amargura não se prolonga eternamente, e a medida do prazer nunca se completa. Alegrem-se se não tremem de frio, se as garras da fome e da sede não dilaceram suas entranhas. Vocês não têm a espinha quebrada, suas duas pernas andam, seus dois braços se dobram, seus dois olhos enxergam e seus dois ouvidos escutam – quem poderia vocês invejar? E por quê? A inveja é o que mais nos tortura. Esfreguem bem os olhos, purifiquem seus corações, então poderão aquilatar perfeitamente quem verdadeiramente lhes quer e deseja o bem. Não lhes façam nenhum mal, não pronunciem palavras malévolas contra eles, não permitam que as brigas os separem, pois quem pode saber se este não é o seu último ato antes de serem presos? E isso lhe pesará na memória!... p557/8





        

"Feche os olhos, amigo leitor.

Ouve o ranger das rodas? São os stolípin que passam.

São os trens vermelhos que passam.

A cada minuto do dia e da noite.

A cada dia do ano.

E esta água que marulha?

São os barcos de detentos que vagam.

E os motores dos “tintureiros”, observem como roncam. Desembarca-se, embarca-se, translada-se sem cessar.

E este rumor?

As celas superlotadas das prisões de trânsito.

E estes gritos?

Os prantos das pessoas

roubadas,

violentadas,

espancadas."

 

 




  Arquipélago Gulag

Alexandre Soljenítsin

Círculo do Livro

 







O holocausto russo (Gulags - Campos de Trabalhos Forçados) foi tão ou mais hediondo que o próprio Holocausto, no mais das vezes os “inimigos” eram pessoas humildes da própria Rússia que nem sempre tiveram a “sorte” de morrer logo... foram definhando em sofrimentos indizíveis sendo jogados de um lado para outro até morrerem à míngua enquanto eram esfolados vivos por carrascos da mesma nacionalidade.

 



As vezes, ao meio da noite,

as fechaduras rangem e os corações gelam:

será para mim:

Não, não é para mim!

E o guarda abre a porta de madeira para dizer qualquer coisa absurda:

“Recolham as coisas que estão no parapeito da janela!”

Esse simples ato de abrir a porta

pode ter tirado a todos os catorze um ano de vida;

bastara talvez repetir uma meia centena de vezes essa operação para já não ser necessário gastar uma bala!

Mas como todos lhe ficaram agradecidos,

por te terminado tudo bem:

“Vamos já guarda-las, cidadão-chefe!”

 

 

 

 


 


Adquirida consciência, entendendo minimamente o “Processo Terra”, compreendemos finalmente que nada há a ser feito a não ser colaborar com o próximo, tentando ampará-lo, minimizar o fardo daquele que ignora; é certo que não é possível concordar com o sistema sócio/político Terra, mas, ao ler Arquipélago Gulag, é certo também que o melhor a fazer, - ao menos em uma sociedade sã, o que não foi o caso nestes anos negros a que faz referência Alexandre Soljenítsin -  é não ir contra a ânsia humana egoísta, e que um ente puro não consegue nem de longe perceber as intenções de um ente doente. (20.09.2020 após ler as pgs. 380 a 390)

Nossas percepções a cada dia se esvanecem em meio às ilusões que potencializam os descasos humanos, porém, atentar-se ao menos para a percepção da não necessidade do vazio contato alheio privaria cada um de nós de terríveis dissabores; o que nos facilitaria viver um pouco mais próximo das portas do que Alexandre Soljenítsin chama de Altai.





Alexandre; obrigado por sua generosidade para com seus amigos de cárcere e para com o mundo; por seus extenuantes esforços; por esta visceral compilação; por este Livro Extraordinário. Desejo de todo o meu coração que o que é que você tenha conquistado com seu sofrimento e seus esforços te conduza a um Espaço/Tempo muito além ao tão desejado “Altai”.





 

“Ah! Se fosse possível refugiar-se nessa paz! Ouvir o canto claro e sonoro do galo sob um ar límpido! Acariciar o focinho de um cavalo sério e bonacheirão! E que vão para o diabo todos os grandes problemas, que quebre com eles a cabeça alguém mais estúpido do que eu! Repousar ali das injúrias do investigador, desse fastidioso desenrolar de toda a sua vida, do barulho das fechaduras da prisão, do asfixiante ar viciado da cela. A vida que nos é dada é tão pequena, tão curta! E nós a expomos criminosamente a uma metralhadora qualquer e nos imiscuímos com ela, assim pura, no sórdido lixo da política! Lá, no Altai, eu viveria na mais baixa e obscura cabana do extremo da aldeia, na orla do bosque. E iria ao bosque não para apanhar lenha seca ou cogumelos, mas simplesmente para errar entre as árvores, de que abraçaria os troncos: meus queridos! De nada mais preciso!...” p266

 

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