sábado, 16 de julho de 2022

Sartre; pinçamentos

 








Ajustes -
 No fundo, o escritor não é pago; é alimentado, mais ou menos bem, segundo a época. E não poderia ser de outro modo, pois sua atividade é inútil: não é nada útil, e por vezes é até nocivo que a sociedade tome consciência de si mesma. Justamente, o útil se define no contexto de uma sociedade constituída e em função de instituição, valores e fins já fixados. Se a sociedade se vê, e sobretudo se ela se vê vista, ocorre, por esse mesmo fato, a contestação dos valores estabelecidos e do regime: o escritor lhe apresenta sua imagem e a intima a assumi-la ou então a transformar-se. E de qualquer modo ela muda; perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantenedoras do equilíbrio que ele tende a romper. Pois a passagem ao mediato, que só pode ocorrer pela negação do imediato, é uma revolução permanente. Só mesmo as classes dirigentes podem se dar ao luxo de remunerar uma atividade tão improdutiva e tão perigosa e, se o fazem, é ao mesmo tempo por uma questão de tática e por um mal-entendido. [sic] p79/80








O mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem.

 

 




O mito justificador dessa classe laboriosa e improdutiva é o utilitarismo; de um modo ou de outro, o burguês faz o papel de intermediário entre o produtor e o consumidor; ele é o meio-termo elevado à máxima potência; portanto, no par indissolúvel que formam o meio e o fim, decidiu atribuir importância primordial ao meio. O fim fica subentendido, jamais é encarado de frente, passa sob silêncio; a meta e a dignidade de uma vida humana consistem em consumir-se na organização dos meios; não é sério empenhar-se sem intermediário na produção de um fim absoluto; é como ter a pretensão de encarar Deus face a face, sem o auxílio da Igreja. Só se dará crédito às empreitadas cujo fim é o horizonte, sempre distanciado, de uma série infinita de meios. Se a obra de arte entra no círculo utilitário, se pretende ser levada a sério, será preciso que desça do céu dos fins incondicionados e se resigne a tornar-se útil, isto é, que se apresente como meio capaz de encadear outros meios. Em particular, como o burguês não se sente inteiramente seguro de si, uma vez que o seu poder não se assenta em nenhum decreto da Providência, será necessário que a literatura o ajude a se sentir burguês por direito divino. Com isso ela se arrisca, depois de ter sido, no século XVIII, a consciência pesada dos privilegiados, a tornar-se, no século XIX, a consciência tranquila de uma classe opressora. Isso até seria aceitável se o escritor pudesse manter aquele espírito de crítica livre, que fez sua fortuna e o seu orgulho no século anterior. Mas agora o seu público se opõe a isso: enquanto lutava contra o privilégio da nobreza, a burguesia se acomodava à negatividade destrutiva; agora que detém o poder, passa à construção e pede que a ajudem a construir. No seio da ideologia religiosa, a contestação era possível porque o crente relacionava as suas obrigações e os seus artigos de fé com a vontade de Deus; com isso, estabelecia com o Todo-Poderoso um vínculo concreto e feudal, de pessoa a pessoa. Esse recurso ao livre-arbítrio divino introduzia, ainda que Deus fosse perfeito e acorrentado à sua perfeição, um elemento de gratuidade na moral cristã e, em consequência, um pouco de liberdade na literatura. O herói cristão é sempre Jacó em luta com o anjo: o santo contesta a vontade divina, mesmo que seja para submeter-se a ela ainda mais estreitamente. Mas a ética burguesa não deriva da Providência: suas regras universais e abstratas estão inscritas nas coisas: não são o efeito de uma vontade soberana e amável, porém pessoal, mas se assemelham antes às leis incriadas da física. Ao menos é o que se supõe, pois não é prudente examinar essas regras muito de perto. Precisamente porque a origem delas é obscura, o homem sério recusa-se a examiná-las. A arte burguesa será média ou não será nada; ela se proibirá de tocar nos princípios por medo que desmoronem, e de sondar demasiado o coração humano por receio de nele encontrar a desordem. Nada mais assustador para o seu público do que o talento, loucura ameaçadora e feliz, que descobre o fundo inquietante das coisas por meio de palavras imprevisíveis, e, através de repetidos apelos à liberdade, vasculha o fundo ainda mais inquietante dos homens. A facilidade vende mais: é o talento subjugado, voltado contra si mesmo, a arte de tranquilizar por meio de discursos harmoniosos e previsíveis, de mostrar, num tom educado, que o mundo e o homem são medíocres, transparentes, sem surpresas, sem ameaças e sem interesse. [sic] p107





Trata-se de negar o mundo, ou de consumi-lo. Negá-lo pelo consumo. Flaubert escreve para se livrar dos homens e das coisas. Sua frase cerca o objeto, agarra-o, imobiliza-o e lhe quebra a espinha, cerra-se sobre ele, transforma-se em pedra e com ela o petrifica. É cega e surda, sem artérias; nenhum sopro de vida, um silêncio profundo a separa da frase seguinte; cai no vazio, eternamente, e arrasta a sua presa nessa queda infinita. Toda realidade, uma vez descrita, é riscada do inventário: passa-se à seguinte. O realismo não é nada mais do que essa grande caçada enfadonha.

 






E há mais: como o burguês só se relaciona com as forças naturais através de pessoas interpostas; como a realidade material lhe aparece sob a forma de produtos manufaturados; como ele está cercado, a perder de vista, por um mundo já humanizado que lhe devolve a própria imagem; como se limita a colher, na superfície das coisas, as significações que outros homens aí depositaram; como sua tarefa consiste essencialmente em manipular símbolos abstratos, palavras, cifras, esquemas, diagramas, para determinar por quais métodos seus assalariados repartirão os bens de consumo; como sua cultura, bem como sua profissão, o predispõem a pensar sobre o pensamento, ele se convenceu de que o universo é redutível a um sistema de ideias.








(...)“é com bons sentimentos que se faz a má literatura”. Para uns, a literatura é a subjetividade levada ao absoluto, uma fogueira de alegria onde se retorcem os ramos negros dos seus sofrimentos e dos seus vícios; jazendo nas profundezas do mundo como num calabouço, eles o superam e o dissipam por meio da sua insatisfação reveladora dos "alhures".






O burguês dissolve em ideias o esforço, o sofrimento, as necessidades, a opressão, as guerras: não existe o mal, somente um pluralismo; certas ideias vivem em liberdade: é preciso integrá-las ao sistema. Assim, ele concebe o progresso humano como um vasto movimento de assimilação: as ideias se assimilam entre si, os espíritos se assimilam entre si. Ao termo desse imenso processo digestivo, o pensamento encontrará a sua unificação, e a sociedade a sua integração total.







Ele vende a sua produção, mas despreza os que a compram e se esforça por lhes decepcionar os desejos; estão convencidos de que vale mais ser desconhecido do que célebre, e que o sucesso, se acaso chega ao artista em vida, se explica por um mal-entendido.






Tal otimismo está no extremo oposto da concepção que o escritor tem da sua arte: o artista tem necessidade de uma matéria inassimilável, pois a beleza não se resolve em ideias ainda que seja prosador e manipule signos, só haverá graça e força em seu estilo se ele for sensível à materialidade das palavras e às suas resistências irracionais. E se o artista deseja fundamentar o universo na sua obra e sustentá-lo por uma inesgotável liberdade, é precisamente porque faz uma distinção radical entre as coisas e o pensamento; sua liberdade só é homogênea à coisa porque ambas são insondáveis e, se ele quiser devolver ao Espírito o deserto ou a floresta virgem, isso não se dará transformando-os em ideias de deserto e de floresta, mas esclarecendo o Ser enquanto Ser, com sua opacidade e seu coeficiente de adversidade, pela espontaneidade indefinida da Existência. É por isso que a obra de arte não se reduz à ideia: em primeiro lugar, porque é produção ou reprodução de um ser, isto é, de alguma coisa que nunca se deixa ser inteiramente pensada; em seguida, porque esse ser é totalmente impregnado por uma existência, isto é, por uma liberdade que decide quanto à própria sorte é ao valor do pensamento. É por isso também que o artista sempre teve uma compreensão particular do Mal, que não é o isolamento provisório e remediável de uma ideia, mas a irredutibilidade do mundo e do homem ao Pensamento. [sic] p109/110






Não é por acaso que escreveram maus livros: se tinham talento, foi preciso escondê-lo.

 





Reconhece-se o burguês pelo fato de ele negar a existência das classes sociais e especialmente da burguesia. O fidalgo deseja comandar porque pertence a uma casta. O burguês fundamenta o seu poder e o seu direito de governar na maturação refinada que a posse secular dos bens deste mundo confere. Relações sintéticas, aliás, ele só admite entre o proprietário e a coisa possuída; quanto ao mais, o burguês demonstra pela análise que todos os homens são semelhantes porque são os elementos invariantes das combinações sociais, e cada um deles, independentemente do seu lugar na escala, contém a natureza humana por inteiro. A partir daí, as desigualdades aparecem como acidentes fortuitos e passageiros, que não podem alterar as características permanentes do átomo social. Não há proletariado, isto é, não há uma classe sintética da qual cada operário seria um modo passageiro; há apenas proletários, cada um isolado na sua natureza humana, e que não estão unidos entre si por uma solidariedade interna, mas somente por vínculos externos de semelhança. Entre os indivíduos que a sua propaganda analítica circunscreveu e separou, o burguês só vê relações psicológicas. Compreende-se: como ele não tem um domínio direto sobre as coisas, como o seu trabalho se exerce essencialmente sobre os homens, trata-se, para ele, apenas de agradar e intimidar; a cerimônia, a disciplina e a cortesia regulam a sua conduta; considera seus semelhantes como marionetes, e se deseja adquirir algum conhecimento sobre as afeições e o caráter do homem, é que cada paixão lhe aparece como um cordão de manipulação; o breviário do burguês ambicioso e pobre é a "Arte de subir na vida", e o do rico, a "Arte de comandar". A burguesia considera, portanto, o escritor como um expert; se ele se envolve em meditações sobre a ordem social, ela se entedia e se assusta: tudo que pede ao escritor é que partilhe com ela a sua experiência prática do coração humano. Eis a literatura reduzida, como no século XVII, à psicologia. A psicologia de Corneille, de Pascal, de Vauvenargues, ainda era um apelo catártico à liberdade. Mas o comerciante desconfia da liberdade dos seus fregueses, e o administrador desconfia da liberdade do seu vice. Tudo que desejam é que lhes forneçam receitas infalíveis para seduzir e dominar. É preciso que o homem seja governável através de recursos fáceis e seguros; em suma, que as leis do coração sejam rigorosas e sem exceções. O chefe burguês acredita tanto na liberdade humana quanto o cientista acredita no milagre. E como sua moral é utilitária, a mola mestra da sua psicologia será o interesse. Para o escritor, não se trata mais de dirigir a sua obra, como um apelo, a liberdades absolutas, mas sim de expor as leis psicológicas que o condicionam a leitores condicionados como ele. [sic] p110/111






As conclusões são tiradas de antemão; antecipadamente já se estabeleceu o grau de profundidade permitido à investigação, as motivações psicológicas já foram selecionadas, o próprio estilo já foi regulamentado. O público não receia nenhuma surpresa, pode comprar de olhos fechados. E a literatura é assassinada. 

 




Idealismo, psicologismo, determinismo, utilitarismo, espírito de seriedade, eis o que o escritor burguês deve refletir em primeiro lugar para o seu público. Não se pede mais dele que restitua a estranheza e a opacidade do mundo, mas que o dissolva em impressões elementares e subjetivas, facilitando sua digestão; nem que encontre, no mais fundo da sua liberdade, os mais íntimos movimentos do coração, mas que confronte a sua "experiência" com a dos seus leitores. Suas obras são, ao mesmo tempo, inventários da propriedade burguesa, perícias psicológicas que invariavelmente procuram legitimar os direitos da elite e mostrar a sabedoria das instituições, e manuais de civilidade. As conclusões são tiradas de antemão; antecipadamente já se estabeleceu o grau de profundidade permitido à investigação, as motivações psicológicas já foram selecionadas, o próprio estilo já foi regulamentado. O público não receia nenhuma surpresa, pode comprar de olhos fechados. E a literatura é assassinada. De Émile Augier a Marcel Prévost e Edmond Jaloux, passando por Dumas filho. Pailleron, Ohnet, Bourget, Bordeaux, sempre apareceram escritores dispostos a fechar negócio e, se ouso dizer, fazer jus até o fim à própria assinatura. Não é por acaso que escreveram maus livros: se tinham talento, foi preciso escondê-lo.





O chefe burguês acredita tanto na liberdade humana quanto o cientista acredita no milagre. E como sua moral é utilitária, a mola mestra da sua psicologia será o interesse. Para o escritor, não se trata mais de dirigir a sua obra, como um apelo, a liberdades absolutas, mas sim de expor as leis psicológicas que o condicionam a leitores condicionados como ele.





Os melhores se recusaram. Essa recusa salva a literatura, porém lhe fixa os traços característicos durante cinquenta anos. De fato, desde 1848 até a guerra de 1914, a unificação radical do público leva o autor a escrever, por princípio, contra todos os seus leitores. Ele vende a sua produção, mas despreza os que a compram e se esforça por lhes decepcionar os desejos; estão convencidos de que vale mais ser desconhecido do que célebre, e que o sucesso, se acaso chega ao artista em vida, se explica por um mal-entendido. E se porventura o livro publicado não consegue chocar o suficiente, acrescenta-se um prefácio para insultar. Esse conflito fundamental entre o escritor e o seu público é um fenômeno sem precedentes na história literária. No século XVII o acordo entre o homem de letras e os leitores é perfeito; no século XVIII, o autor dispõe de dois públicos igualmente reais e pode apoiar-se num ou noutro como queira; o romantismo, em seus primórdios, foi uma vã tentativa de evitar a luta aberta, restaurando essa dualidade e apoiando-se na aristocracia contra a burguesia liberal. Mas depois de 1850 já não havia meio de dissimular a contradição profunda que opõe a ideologia burguesa às exigências da literatura. Por essa época, um público virtual já se esboça nas camadas profundas da sociedade: ele já espera que alguém o revele a si mesmo; é porque a causa da instrução gratuita e obrigatória progrediu: logo mais, a Terceira República consagrará para todos os homens o direito de ler e escrever. Que fará o escritor? Optará pela massa contra a elite, tentando recriar, em proveito próprio, a dualidade do público? [sic] p112/113






Tal otimismo está no extremo oposto da concepção que o escritor tem da sua arte: o artista tem necessidade de uma matéria inassimilável, pois a beleza não se resolve em ideias ainda que seja prosador e manipule signos, só haverá graça e força em seu estilo se ele for sensível à materialidade das palavras e às suas resistências irracionais




 

O escritor não ensina nada, não reflete nenhuma ideologia e, sobretudo, recusa-se a moralizar: bem antes que Gide o escrevesse, Flaubert, Gautier, os Irmãos Goncourt, Renard, Maupassant, já à sua maneira haviam dito que “é com bons sentimentos que se faz a má literatura”. Para uns, a literatura é a subjetividade levada ao absoluto, uma fogueira de alegria onde se retorcem os ramos negros dos seus sofrimentos e dos seus vícios; jazendo nas profundezas do mundo como num calabouço, eles o superam e o dissipam por meio da sua insatisfação reveladora dos "alhures". Parece-lhes que o seu coração é bastante singular para que a pintura que dele fazem se mantenha resolutamente estéril. Outros se constituem em testemunhas imparciais de sua época. Mas não testemunham aos olhos de ninguém; elevam ao absoluto o testemunho e as testemunhas, apresentando ao céu vazio o panorama da sociedade que os rodeia. Ludibriados, transpostos, unificados, prisioneiros na armadilha de um estilo artista, os eventos do universo são neutralizados e, por assim dizer, colocados entre parênteses; o realismo é uma epoché. A impossível verdade encontra-se aqui com a inumana Beleza, "bela como um sonho de pedra". Nem o autor, enquanto escreve, nem o leitor, enquanto lê, são mais deste mundo; transformaram-se em puro olhar; observam de fora o ser humano, esforçando-se para ter sobre ele o ponto de vista de Deus, ou, se se quiser, do vazio absoluto. Mas, mesmo assim, ainda posso reconhecer-me na descrição que o mais puro dos líricos faz de suas peculiaridades; e, se o romance experimental imita a ciência, não é ele também utilizável, como ela? Não pode ter também suas aplicações sociais? O terror de ser útil leva os extremistas a esperar que as suas obras não possam nem sequer esclarecer o leitor quanto ao seu próprio coração; recusam-se a transmitir a sua experiência. Numa hipótese extrema, a obra só será totalmente gratuita se conseguir ser totalmente inumana. Ao fim disso, desponta a esperança de uma criação absoluta, quintessência do luxo e da prodigalidade, inutilizável neste mundo porque não é do mundo e não o lembra em nada: a imaginação é concebida como faculdade incondicionada de negar o real, e o objeto de arte se edifica sobre o desmoronamento do universo. Há o artificialismo exasperado de Des Esseintes, o desregramento sistemático de todos os sentidos e, por fim, a destruição organizada da linguagem. Há também o silêncio: esse silêncio glacial, a obra de Mallarmé, ou o do Monsieur Teste, para quem toda comunicação é impura. A ponta extrema dessa literatura brilhante e mortal é o nada. O seu ponto extremo e a sua essência profunda: o novo espiritual não tem nada de positivo, é negação pura e simples do temporal; na Idade Média, é o temporal que é o Inessencial em relação à Espiritualidade; no século XIX dá-se o inverso: o Temporal vem primeiro, o espiritual é o parasita inessencial que o corrói e tenta destruí-lo. Trata-se de negar o mundo, ou de consumi-lo. Negá-lo pelo consumo. Flaubert escreve para se livrar dos homens e das coisas. Sua frase cerca o objeto, agarra-o, imobiliza-o e lhe quebra a espinha, cerra-se sobre ele, transforma-se em pedra e com ela o petrifica. É cega e surda, sem artérias; nenhum sopro de vida, um silêncio profundo a separa da frase seguinte; cai no vazio, eternamente, e arrasta a sua presa nessa queda infinita. Toda realidade, uma vez descrita, é riscada do inventário: passa-se à seguinte. O realismo não é nada mais do que essa grande caçada enfadonha. Trata-se, primeiramente, de tranquilizar-se. Por onde passa o realismo, a relva não cresce mais. O determinismo do romance naturalista esmaga a vida, substitui a ação humana por mecanismos de mão única. Tem apenas um tema: a lenta desagregação de um homem, de uma empresa, de uma família, de uma sociedade; é preciso voltar ao ponto zero: toma-se a natureza em estado de desequilíbrio produtivo e anula-se esse desequilíbrio, voltando-se a um equilíbrio de morte pela anulação das forças atuantes. Quando esse tipo de romance nos mostra, por acaso, a vitória de um ambicioso, é só aparência: Bel Ami não toma de assalto os redutos da burguesia, é um ludião cuja subida apenas testemunha a derrocada de uma sociedade. E quando o simbolismo descobre o estreito parentesco entre a beleza e a morte, não faz senão explicitar o tema de toda a literatura da metade do século. Beleza do passado, pois que ele já não existe, beleza das jovens moribundas e das flores que fenecem, beleza de todas as erosões e todas as ruínas, suprema dignidade da consumação, da doença que mina, do amor que devora, da arte que mata; a morte está em toda parte, na nossa frente, atrás de nós, até no sol e nos perfumes da terra. A arte de Barres é uma meditação sobre a morte: uma coisa só é bela quando "consumível", isto é, morre quando desfrutamos dela. A estrutura temporal que convém particularmente a essa brincadeira de príncipes é o instante. Porque passa e porque é, em si mesmo, a imagem da eternidade, o instante é a negação do tempo humano, esse tempo em três dimensões do trabalho e da história. É preciso muito tempo para construir; um instante basta para lançar tudo por terra. [sic] p122/123






O burguês dissolve em ideias o esforço, o sofrimento, as necessidades, a opressão, as guerras: não existe o mal, somente um pluralismo; certas ideias vivem em liberdade: é preciso integrá-las ao sistema.





 

Nada nos garante que a literatura seja imortal; hoje a sua chance, a sua única chance, é a chance da Europa, do socialismo, da democracia, da paz. É preciso tentá-la; se nós, os escritores, a perdermos, tanto' pior para nós. Mas tanto pior também para a sociedade. Através da literatura, conforme mostrei, a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não-equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar. Mas, afinal; a arte de escrever não é protegida pelos decretos imutáveis da Providência; ela é o que os homens dela fazem, eles a escolhem, ao se escolherem. Se a literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes. Certamente, nada disso é importante: o mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem. [sic] p264





Se a sociedade se vê, e sobretudo se ela se vê vista, ocorre, por esse mesmo fato, a contestação dos valores estabelecidos e do regime: o escritor lhe apresenta sua imagem e a intima a assumi-la ou então a transformar-se. E de qualquer modo ela muda; perde o equilíbrio que a ignorância lhe proporcionava, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá à sociedade uma consciência infeliz, e por isso se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantenedoras do equilíbrio que ele tende a romper.



No livro

Que é a literatura? 

Jean-Paul Sartre

Vozes de bolso editora



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