sábado, 19 de janeiro de 2019

"Game"/"Soma"/"Meta"




“Uma das principais funções de um amigo é suportar (sob forma atenuada e simbólica) os castigos que nós gostaríamos, mas não temos possibilidade, de infligir aos nossos inimigos” p216




“- Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de Otelo. Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice: não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não tem esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Da liberdade! – riu. – Espera que os Deltas saibam o que é a liberdade! E agora quer que eles compreendam Otelo! Meu caro jovem!” p264



“[...]
Passou a mão pelos olhos, como se procurasse apagar da lembrança a imagem daquelas longas filas de anões idênticos nas mesas de montagem, daquelas manadas de gêmeos enfileirados na entrada da estação do monotrilho de Brentford, daquelas larvas humanas que rodeavam o leito de morte de Linda, da fisionomia incessantemente repetida de seus agressores. – Horríveis! p266


“- É um absurdo. Um homem decantado como Alfa, condicionado como Alfa, ficaria louco se tivesse de fazer o trabalho de um Ípsilon Semialeijão; ficaria louco ou se poria a destruir tudo. Os Alfas podem ser completamente socializados, mas com a condição de que se lhes dê um trabalho de Alfa. Somente a Ípsilon se pode pedir que faça sacrifícios de Ípsilon, pela simples razão de que, para ele, não são sacrifícios. São a linha de menor resistência. Seu condicionamento fixou trilhos ao longo dos quais ele tem de correr. Não tem outro remédio, está predestinado. Mesmo depois da decantação, ele fica sempre dentro de um bocal, um bocal invisível de fixações infantis e embrionárias. Cada um de nós, é claro – continuou meditativamente o Administrador -, atravessa a vida no interior de um bocal. Mas, se somos Alfas, nosso bocal é relativamente enorme. Sofreríamos intensamente se nos víssemos confinados num espaço mais estreito. Não se pode pôr psudochampanha para castas superiores em bocais de casta inferior. Teoricamente, isso é óbvio.” P267





“- A população é ótima – disse Mustafá Mond – obedece ao modelo do iceberg: oito nonas partes abaixo da linha de flutuação e uma nona parte acima dela.” p268





“Ciência? O Selvagem franziu a testa. Conhecia a palavra. O que significava exatamente, porém, ele não o sabia. Shakespeare e os velhos do pueblo nunca se haviam referido à ciência, e de Linda ele recebera apenas indicações muito vagas: a ciência era uma coisa com a qual se faziam helicópteros, uma coisa que fazia com que a gente risse das Danças do Trigo, uma coisa que impedia de ter rugas e de perder os dentes. Fez um esforço desesperado para compreender o que o Administrador queria dizer.” p269




“- Sim – continuou Mustafá Mond -, essa é outra parcela no custo da estabilidade. Não é somente a arte que é incompatível com a felicidade, também o é a ciência. Ela é perigosa; temos de mantê-la cuidadosamente acorrentada e amordaçada.” p270




“- Alguém poderia dizer que vão cortar a cabeça dele – comentou o Administrador, quando fecharam a porta. – Ao passo que, se tivesse a mínima parcela de bom senso, compreenderia que esse castigo é na realidade uma recompensa. Vai ser mandado para uma ilha, isto é, para um lugar onde conhecerá o mais interessante conjunto de homens e mulheres existentes em qualquer parte do mundo. Todas as pessoas que, por esta ou aquela razão, adquiriram demasiada consciência de sua individualidade para poderem adaptar-se à vida comunitária; todas as pessoas a quem a ortodoxia não satisfaz, que têm ideias próprias e independentes; todos aqueles, numa palavra, que são alguém. Quase lhe tenho inveja, Sr. Watson.” p272


“- Às vezes lamento haver renunciado à ciência. A felicidade é uma soberana exigente, sobretudo a felicidade dos outros. Uma soberana muito mais exigente do que a verdade, quando não se está condicionado para aceita-la sem restrições. – Suspirou, tornou a calar-se, e logo recomeçou, com mais vivacidade: - Enfim, o dever é o dever. Não podemos consultar nossas preferências pessoais. Interesso-me pela verdade, gosto da ciência. Mas a verdade é uma ameaça, a ciência é um perigo público. Ela é tão perigosa hoje quanto foi benfazeja no passado. Deu-nos o equilíbrio mais estável que a história registra.” p272


“Mas não podemos permitir que ela (a ciência) desfaça a boa obra que realizou. Por isso limitamos com tanto cuidado o círculo das pesquisas; por isso estive a ponto de ser mandado para uma ilha. Nós permitimos apenas que ela se ocupe dos problemas mais imediatos do momento. Todas as demais pesquisas são ativamente desestimuladas. É curioso – prosseguiu, depois de pequena pausa – ler o que se escrevia na época de Nosso Ford sobre o progresso científico. Segundo parece, imaginavam que se podia permitir que ele continuasse indefinidamente, sem consideração a qualquer outra coisa. O saber era o mais alto bem; a verdade, o valor supremo; tudo o mais era secundário e subordinado. É certo que as coisas já então estavam começando a mudar. Nosso Ford mesmo fez muito para diminuir a importância da verdade e da beleza, em favor do conforto e da felicidade. A produção em massa exigia essa transferência. A felicidade universal mantém as engrenagens em funcionamento regular; a verdade e a beleza são incapazes de fazê-lo. E, é claro, cada vez que as massas tomavam o poder público, era a felicidade, mais do que a verdade e a beleza, o que importava. Não obstante, e apesar de tudo, a pesquisa científica irrestrita ainda era permitida. Continuava-se a falar na verdade e na beleza como se fossem os bens supremos. Até a época da Guerra dos Nove Anos. Ela fez com que mudassem de tom, posso garantir-lhes. Que valor podem ter a verdade, a beleza e o conhecimento quando as bombas de carbúnculo estouram em torno de nós?” p273

“- Mas não é natural sentir que há um Deus?
- O senhor poderia igualmente perguntar se é natural fechar as calças com zíper – retrucou o Administrador sarcasticamente. – Fez-me lembrar outro desses antigos, chamado Bradley. Ele definia a filosofia como a arte de encontrar más razões para aquilo em que se crê por instinto. Como se nós acreditássemos em alguma coisa, seja o que for, por instinto! Cremos nas coisas porque somos condicionados a crer nelas. A arte de encontrar más razões para aquilo em que se crê por outras más razões, isto é a filosofia.” p280

“- Meu jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heroico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde houver guerras, onde houver obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido, Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar amores extremados, seja por quem for. Não há nada que se assemelhe a obrigações de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal modo que ninguém pode deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há, verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum acaso infeliz, ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa de desagradável, bem, então há o soma, que permite uma fuga da realidade.” P 283




“- Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? ‘Se depois de toda tempestade vêm tais calmarias, então que soprem os ventos até acordar a morte!’”. p284


Admirável Mundo Novo
Aldous Huxley

Biblioteca Azul



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Quais escravos




...e os escravos da nova era já não têm cor, têm cores. Quais àqueles: se lhes fosse dada a alforria pouco poderiam fazer por não entenderem o significado muito menos o sentido da liberdade.



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