sábado, 13 de março de 2021

A incrível viagem de Shackleton

 


Parte IV – 3

(...)



Alone, alone,

all, all alone,

Alone on a wide wide sea.



 

O aspecto do grupo era lamentável – três barquinhos, coalhados com o que restava de uma expedição portentosa, carregando 28 homens em péssimo estado numa tentativa final, desesperada, de sobreviver. Mas dessa vez não havia como voltar atrás, e todos sabiam disso.


Os homens se agarravam aos costados dos barcos enquanto avançavam. Embora estivessem fazendo um progresso considerável, eram obrigados a conquistá-lo da maneira mais difícil. Tanto o Docker quanto o Wills faziam água o tempo todo. Os homens estavam voltados para a popa, com o vento diretamente em seus rostos – uma posição um pouco melhor do que ficar de frente para a proa, situação em que seriam atingidos pela espuma que quebrava nos costados dos barcos.

No meio da tarde o vento ficou ainda mais forte, de modo que Shackleton ordenou que as velas fossem enrizadas, e continuaram assim até o final da tarde. Ao pôr-do-sol, Worsley encostou o Docker no Caird e insistiu para que continuassem, mas Shackleton se opôs terminantemente. Já era muito difícil, disse, manter os barcos juntos à luz do dia; à noite, seria impossível. Rejeitou até a sugestão feita por Worley de juntarem-se e continuarem a remo noite adentro.



Shackleton estava convencido de que a melhor chance que tinham de chegar em segurança seria permanecerem juntos. Tanto o Caird como o Wills dependiam amplamente do talento de Worsley como navegador, e Shackleton estava plenamente consciente de que o Wills precisava de cuidados constantes.

Além de o próprio barco ser o menos adequado dos três a navegar em alto-mar, Hudson, que o comandava, era um dos homens que mais acusava os efeitos da tensão e estava ficando obviamente enfraquecido, tanto física quanto mentalmente. Shackleton estava certo de que o Wills se perderia caso se separasse dos outros.


Decidiu que os três barcos passariam a noite à capa. Mandou que o Docker lançasse uma âncora flutuante, e o Caird foi amarrado à popa do Docker, com o Wills logo atrás. Trabalhando com os dedos endurecidos pelo frio, Worsley, Greenstreet e McLeod amarraram três remos e esticaram um pedaço de lona sobre a armação obtida. O aparelho foi amarrado a um cabo longo e lançado ao mar. Esperavam que a âncora flutuante funcionasse como um freio, mantendo as proas dos barcos contra o vento ao ser arrastada pelo mar. Quando a âncora flutuante ficou na posição, as tripulações dos três barcos se acomodaram para esperar pela manhã.

Foi a pior de todas as noites. Assim que a escuridão se aprofundou, o vento aumentou e a temperatura caiu ainda mais. Novamente, não tinham como saber a temperatura exata, mas é provável que fosse de pelo menos 22 graus abaixo de zero. Fazia tanto frio que a água do mar que caía sobre eles se congelava quase assim que se encostava em seus corpos. Antes mesmo que a escuridão ficasse completa, perceberam claramente que a âncora flutuante não conseguiria mantê-los de frente para o vento. Os barcos caíam constantemente nos cavados entre as vagas, para os quais eram empurrados de lado pelo movimento do mar. Os barcos, os homens – tudo ficava molhado, e depois congelava. A maioria dos homens tentava abrigar-se sob as lonas das barracas, mas o vento as arrancava o tempo todo de suas mãos.


No Caird, conseguiram abrir espaço suficiente para quatro homens se amontoarem de cada vez numa pilha de sacos de dormir reunida na popa e se revezarem tentando dormir em vão. No Docker, porém, só havia espaço suficiente para os homens ficarem sentados em posição ereta, muito juntos, com os pés apertados entre as caixas de suprimentos. A água do mar que entrava a bordo corria pelo fundo do barco, e, como a maioria dos homens usava botas de feltro, seus pés passaram a noite toda mergulhados na água gelada. Faziam o possível para esvaziar os barcos, mas a água chegava às vezes à altura de seus tornozelos. Para evitar que seus pés congelassem, ficavam o tempo todo mexendo os dedos dos pés dentro das botas. O melhor que podiam esperar era que a dor nos pés continuasse, porque se a dor parasse, por mais que o desejassem, isso significaria que os pés estavam ficando congelados. Depois de algum tempo, eles precisavam de uma concentração extrema para continuar a mexer os dedos dos pés – seria tão fácil parar!


À medida que as horas se arrastavam e sua agonia se tornava mais aguda, os homens do Docker reagiram com a única arma pateticamente ridícula de que dispunham – imprecações. Amaldiçoaram e xingaram tudo o que podiam – o mar, o barco, a espuma, o frio, o vento, e muitas vezes amaldiçoavam e xingavam uns aos outros. No entanto, suas imprecações tinham um certo tom de súplica, como se estivessem implorando, numa espécie de oração, para serem libertados desse sofrimento úmido e gelado. Acima de tudo, amaldiçoaram e insultaram Orde-Lees, que pegara a única capa de chuva do barco e se recusava a abrir mão dela. Ele se acomodara na posição mais confortável do barco, empurrando Marston para um lado, e se recusava a mudar de lugar. Ou ignorava ou era indiferente às maldições e aos insultos que lhe lançavam. Depois de algum tempo, Marston desistiu e foi para a popa, onde ficou sentado ao lado de Worsley, junto ao leme. Por algum tempo, só se ouvia o gemido do vento no cordame. Depois, para dar vazão à sua raiva, Marston começou a cantar. Cantou uma canção, esperou algum tempo, e depois cantou outra. Finalmente, repetiu vezes sem conta numa voz cansada, quase sumida, uma canção com um refrão sem sentido.

Ao longo da noite sentiram-se incomodados pela necessidade de urinar com freqüência. O frio intenso era certamente um fator que provocava essa condição, e os dois médicos acreditavam que era agravada pelo fato de que estavam continuamente molhados, o que os fazia absorver grandes quantidades de água pela pele. Qualquer que fosse a razão, precisavam deixar o relativo conforto da lona que os abrigava e caminhar até o lado de estibordo do barco várias vezes durante a noite. A maioria dos homens também estava com diarréia por causa da dieta de pemmican cru, e às vezes saíam correndo até a borda do barco e, segurando firme nas cordas, sentavam-se na amurada congelada. Invariavelmente, o mar gelado os molhava por trás.



De todos, porém, o barco em pior situação era o Wills. Às vezes fazia água até os joelhos. O pequeno Wally How, o marinheiro, achava impossível tirar do espírito o medo de que uma baleia assassina virasse o barco e os jogasse na água. Stevenson, o foguista, de tempos em tempos enterrava o rosto nas mãos e chorava. Blackboro, que insistira em usar as botas de couro a fim de preservar seu par de botas de feltro para o que achava que seria o futuro, ficou com os pés totalmente insensíveis ao cabo de algumas horas. E Hudson, que estava no timão havia quase 72 horas sem descanso, passou a sentir uma dor na nádega esquerda que se tornava cada vez mais intensa, enquanto aquela parte de seu corpo inchava. Depois de algum tempo, só conseguia ficar sentado de lado, e o movimento do barco era para ele uma verdadeira agonia. Também sofria de ferimentos nas mãos provocados pelo frio.

O cabo que ligava o Wills ao Caird se esticava e afrouxava alternadamente, caindo na água e tornando a elevar-se no ar gelado. Com o passar das horas, foi acumulando um revestimento cada vez mais espesso de gelo. As vidas dos oito homens a bordo do Wills dependiam daquele cabo. Caso se partisse, e parecia quase certo que isso iria acontecer, o Wills cairia no cavado entre duas vagas sucessivas e submergiria ao peso da água acumulada antes que sua tripulação conseguisse livrar sua vela do gelo e içá-la.


Todos os barcos estavam cobertos de gelo, mas o Wills carregava um peso extremo. A água o invadia, banhando a pilha de sacos de dormir na proa e deixando-a revestida de uma camada de gelo. O gelo formava massas perto da proa de tanto o barco mergulhar a cada onda, fazendo-o ficar mais pesado, de modo que aproximadamente a cada meia hora, ou menos, alguns homens tinham de ser mandados para tirar o gelo da proa, senão eles afundariam.

Finalmente, para todo o grupo, havia a sede. Deixaram a banquisa de modo tão abrupto que não haviam levado gelo a bordo para ser derretido e transformado em água para beber. Não bebiam nada desde a manhã anterior e estavam começando a ficar desesperados de sede. As bocas estavam secas, e os lábios, feridos pelo frio, começaram a inchar e a rachar. Alguns homens, quando tentavam comer, achavam impossível engolir, e a fome fazia com que ficassem enjoados.

Do livro; A incrível viagem de Shackleton; p206/210





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