sábado, 14 de maio de 2016

Cora Coralina II



Quando eu era menina / bem pequena, / em nossa casa, / certos dias na semana / se fazia um bolo, / assado na panela / com um testo de borralho em cima. / Era um bolo econômico, / como tudo, antigamente. / Pesado, grosso, pastoso / (por sinal que muito ruim). Eu era menina em crescimento. / Gulosa, / abria os olhos para aquele bolo / que me aprecia tão bom / e tão gostoso. / Era só olhos e bocas e desejo / daquele bolo inteiro.19 Minha irmã mais velha / governava. Regrava. / Me dava uma fatia, / tão fina, tão delgada... / E fatias iguais às outras manas. / E que ninguém pedisse mais! / (...) Era aquilo uma coisa de respeito. / Não pra ser comido / assim, sem mais nem menos. / Destinava-se às visitas da noite, / certas ou imprevistas. Detestadas da meninada (Coralina 1993:53-57). Tudo de melhor para os adultos / para as crianças, prato feito, regrado, medido. / Coisas boas, guardadas, defendidas no alto dos armários. (...) Lembro de minha insatisfação com o que me davam / em racionamento constante: chocolate. / Coisa mais gostosa do mundo, feitos com tabletes de chocolate Beringh, / raspado e batido com gema e açúcar, / até perder o cheiro característico do ovo. / Faziam nas casas pela manhã, me davam uma tigelinha minúscula, / tigela grande, tigelona enorme para os adultos./ Eu ali goderando sem mais. / Meu desejo de criança, escondido, reservado, dissimulado, de crescer, / virar gente grande e me fartar de chocolate com cacau Beringh / e gema batida (Coralina 1984:119-122). Aquela gente antiga era sábia / e sagaz, dominante. / (...) Como sabiam com tanta segurança / e autoridade? / Eram peritas em classificar as frutas: / Quente, fria e reimosa. / Quente, abriam perebas nas pernas, na cabeça, / pelos braços. Fria, encatarroava, dava bronquite. / Reimosa, trazia macutena. (Coralina 1984:51).

Em: Cora Coralina: a Poética do Sabor

Andréa Ferreira Delgado Centro de Ensino e Pesquisa Universidade Federal de Goiás


O que dizer dessa Poeta Maior...!?!

Lê-la nos faz desistir de pensar um poema
Muito menos traça-lo
Não por fazer-nos menor
Mas por fazer-nos saber
Que nada sabemos do tema.

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