sábado, 29 de outubro de 2016

XI - Das bodas de Mercúrio... A Mitologia



As bodas de Mercúrio e Filologia

História de maior expressão e de fundamental importância na mediação entre a cultura pagã da Antiguidade tardia e a incipiente cultura do Ocidente cristão, Marciano Capela traz este texto escrito de forma literária mista de versos e prosa conforme tradição da sátira menipéia, retirado aqui do livro A arte de ter razão de Arthur Schopenhauer, dando conta de que a cultura cristã afortunadamente o acolheu por toda a Idade Média. “Trata do De nuptiis Mercurii et Philologiae, em que encontramos, no limiar da nossa era, uma exposição representativa da dialética e, portanto, um testemunho significativo da transmissão do corupus dialecticum da Antiguidade tardia ao Ocidente latino.”  E segue no livro p75:

Os deuses do Olimpo, narra Marciano Capela, preocupavam-se com o fato de que Mercúrio, deus da linguagem e da palavra, ainda não havia encontrado uma esposa adequada. Para pôr fim ao seu duradouro celibato, arranjaram para ele se casar com uma virgem mortal, Filologia, Símbolo do amor pelo logos, a qual, depois da união com Mercúrio, foi recebida entre os imortais. A cerimônia nupcial se dá em presença das divindades olímpicas, reunidas em torno de Júpiter. A noiva chega acompanhada de sete damas de honra, que personificam as sete artes liberais: as três do discurso, isto é, gramática, dialética e retórica (o trivium), e as quatro do número, isto é, geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Cada uma das sete damas de honra expõe os conteúdos do saber que representa e, no fim das bodas, será consagrada a união do infinito poder da linguagem com sua manifestação num saber cientificamente ordenado.

Para nós, é interessante o comparecimento, no quarto livro da obra, da Dialética, personificada por uma dama de honra que avança em segundo lugar, logo atrás da Gramática. Marciano Capela descreve cuidadosamente sua aparência, seu porte e seus atributos. Tem o resto pálido, mas seu olhar é inquieto e penetrante; seus cabelos, densos mas ordenadamente trançados, adornam sua cabeça de modo acurado e completo; usa a túnica e o pálio de Atenas e traz nas mãos os símbolos do seu poder: na esquerda, uma serpente enrolada em enormes espiras e, na direita, plaquetas com esplêndidas e coloridas ilustrações, presas por um gancho oculto; e, enquanto a esquerda esconde sob o pálio suas insídias viperinas, a direita é a todos exibida. O aspecto da Dialética é, no conjunto, agressivo e ameaçador, e ela profere em voz alta, em tom sacerdotal e divinatório, fórmula incompreensíveis para a maioria: que a afirmativa universal se contrapõe de modo oblíquo à particular negativa, e que ambas são conversíveis; fala também de univocidade e equivocidade e assevera ser a única capaz de distinguir o verdadeiro do falso.

Uma entrada em cena cheia de tensão, que causa certo mal-estar nos deuses, mas que Brômio, isto é, o “barulhento” Dionisio-Baco, desdramatiza, observando o quanto a recém-chegada se parece com uma bruxa charlatona, que provoca, entre os espectadores, certa hilariedade. Mas a deusa Palas, que conhece bem a Dialética, intervém para dizer que ela não é personagem de quem se possa zombar, como se verá assim que ela expuser em latim o seu saber. A dialética declara em exórdio ter origens gregas, mas que poderia expressar-se igualmente em latim graças ao precioso trabalho de mediação levado a cabo por Varrão, o primeiro a traduzir seus ensinamentos na língua dos romanos, depois de aprendê-los nos textos de Platão e de Aristóteles. No entanto, seu nome, Dialética, manteve-se em grego, permanecendo igual em Atenas e em Roma. A Dialética começa então a expor seu ensinamento, que compreende, de acordo com a ordem em uso nas escolas gregas, retomada por Varrão, todo o corpus de doutrinas da lógica clássica, articulado do seguinte modo:

1)   De loquendo, isto é, a doutrina do significado dos termos, que compreende os cinco predicáveis (gênero, espécie, definição, próprio, acidente), os antepraedicamenta ou instrumenta categoriarum )isto é, a distinção de diversos ritos de denominação: equívoca, unívoca, plurívoca, própria, alheia), as categorias (substância, quantidade, qualidade, relação, espaço, tempo, fazer sofrer, estado, hábito), os post-praedicamenta (isto é, as quatro formas de oposição: contradição, privação, contrariedade, relatividade), a definição e a divisão;

2)   De eloquendo, isto é, a doutrina do discurso e das suas partes (nomen e verbum, que formam a oratio);

3)   De proloquendo, que compreende a doutrina da proposição predicativa ou juízo (proloquium), que, como síntese ou diairese de representações, tem a característica de poder ser verdadeiro ou falso, as differentiae proloquiorum (ou seja, a qualidade afirmativa ou negativa e a quantidade universal ou particular dos juízos), o proloquiorum affectiones e a conversão das proposições;

4)   De proloquiorum summa, vale dizer, a doutrina do silogismo como concatenação de proposições e as suas diversas formas (categórico, hipotético e misto)
Depois da exposição desses seus ensinamentos, a Dialética se apresta a continuar com a ilustração da doutrina dos sofismas, dos raciocínios capciosos, das falácias e dos enganos que é possível perpetrar por meio da palavra, argumentos tratados nas Refutações sofísticas de Aristóteles.  Mas aqui intervém Palas, que interrompe a Dialética, não apenas para não cansar o auditório, mas também porque a exposição dos enganos sofísticos não convêm diante de Júpiter e das outras divindades. Diz então Palas, dirigindo-se à Dialética para interrompê-la: “Já chega, ó nobre fonte da ciência profunda (profundae fons decens scientiae), que desvela as realidades ocultas, dissertando sem omitir nada que seja pouco claro nem abandonando nada que seja ignoto.”

No que concerne à nossa história, dois pontos desse texto devem ser postos em evidência. O primeiro é que a dialética é considerada apropria fonte do saber científico (fons scientiae) e é tendencialmente identificada com a lógica, entendida como o conjunto das regras do raciocínio e da argumentação corretos, destinadas a discernir o verdadeiro do falso. O outro é que a dialética, justamente por sua natureza de fonte do saber, é separada com rigor da sofística e da erística, que do saber só têm a aparência.

         A presença dessa ideia de dialética entre o final do mundo antigo e o início da nossa era, documentada de forma tão plástica pelo De nuptiis, é posteriormente confirmada por outros textos muito difundidos na Idade Media, em que é possível reencontrá-la, como as Institutiones de Aurélio Cassiodoro, as Etymologiae de Isidoro de Sevilha ou o De dialectica de Alcuíno. Podemos recordar também o De dialectica (ou Principia dialecticae), obra bastante difundida, de autenticidade duvidosa, mas talvez de santo Agostinho, que define a dialética como a disciplina disciplinarum ou a scientia veritatis.

         Temos, portanto, na transição do mundo antigo ao mundo da “idade mediana”, uma ideia decididamente positiva da dialética, entendida como fonte de ciência, que não deixa de surpreender, depois de se ler o texto de Schopenhauer. Perguntamo-nos: como tudo isso foi acontecer? Como se chegou a ver na dialética a fonte da ciência? 

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Particularmente, ao perceber a força envolta em renomadas opiniões historicamente oficializadas que consagram à Dialética as mais elevadas referências, é nosso dever defender que, analogamente, ela seria a síntese da existência observável. Onde cada qual crê firmemente em uma verdade inventada; “o mito nosso de cada vida”.


Pode que a dialética dos deuses ou dos grandes gênios trafegue no que nós simples mortais entendemos por verdade ou mentira com importância descuidadamente diferenciada (por que deveriam eles escusas; evasivas ou não?); por conta da obviedade natural - há tempos preterida ao próprio estado instalado por assumido descompromisso -, e sempre imatura. Conquanto, esses tentam decifrar o que aqueles não veem motivo sequer de abrir discussão. Talvez nos falte perceber que os homens que detém as chaves da nata ou artificialmente criada sabedoria, não têm relação apenas com a matéria palpável por estarem eles, credenciados à transcendência.